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NO VAGAR DA PENUMBRA

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EUROPA: O ESPECTRO DA DÉCADA PERDIDA

Outubro 03, 2013

J.J. Faria Santos

Segundo a Oxfam, num relatório publicado no mês passado ( A Cautionary Tale: The true cost of austerity and inequality in Europe ), a consequência da manutenção das políticas de austeridade será um acréscimo de 15 a 25 milhões no número de europeus que viverão na pobreza em 2025. Notando que os programas de austeridade estão a falhar, dado que aumentaram os défices nalguns países e a dívida na maioria dos membros da União Europeia, o relatório frisa que eles, por outro lado, destruíram “os mecanismos que reduzem a desigualdade e possibilitam o crescimento equitativo”.

A Oxfam põe em destaque a diferença abissal entre o montante da ajuda aprovada para o sector financeiro pela Comissão Europeia entre 2008 e 2011, que correspondeu a 36,7% do PIB da UE, e o valor do programa de estímulos para combater a crise, consubstanciado no Plano Europeu de Recuperação Económica, ao qual foi atribuído uma verba global correspondente a 1,5% do PIB da UE,  inferior à “riqueza acumulada das 10 pessoas mais ricas de Europa.

Relevando que as políticas de ajustamento estrutural aplicadas na Europa falharam estrondosamente noutras latitudes, a Oxfam propõe que se dê prioridade a um programa de estímulos económicos que promova o investimento e a criação de emprego. Destacando a importância de garantir e proteger os serviços públicos de saúde e de educação, a organização dá especial ênfase à indispensabilidade de desenvolver sistemas de protecção social que protejam os mais vulneráveis.

O relatório mostra que a preocupação com a ausência de equidade não deve ser apenas uma questão de justiça social, visto que estabelece uma correlação entre a prevalência da desigualdade e o seu efeito nefasto na perspectiva de um crescimento sustentável de longo prazo. Os empréstimos de alto risco (e juro mais elevado) aos que têm menos possibilidades de pagar aumentam o risco de crises económicas subsequentes (página 12). Com a desigualdade e a pobreza a crescerem, a Oxfam alerta para o facto da Europa enfrentar a perspectiva de uma “década perdida”.

No documento Portugal Case Study, para além de mencionar que entre 2010 e 2012 os gastos com a educação se reduziram em 23%, e que o número de beneficiários do rendimento social de inserção decresceu, desde 2010, de 527 627 para 274 933, a organização destaca o facto de que, em 2011,  “Portugal tinha um coeficiente de Gini de 0,34” , “ pior do que a média da União Europeia de 0,31 e o pior desempenho da zona euro (...)”.

 

Também no mês passado, um relatório do FMI, com o selo de aprovação de Olivier Blanchard e Carlo Cottarelli, intitulado Reassessing the Role and Modalities of Fiscal Policy in Advanced Economies , veio reverter, ou pelo menos reequacionar, os pontos de vista tradicionais da comunidade dos economistas, as perspectivas consensuais, como sempre apresentadas aos não iniciados como axiomas.

Agora, “as aquisições por parte de um banco central de divida soberana tornaram-se útéis por permitirem um ajustamento fiscal mais gradual” (pág.13); o excessivo frontloading  (concentração de medidas de austeridade num curto período de tempo) pode ser contraproducente, porque prejudica o crescimento, sabota a coesão política e social, e enfraquece a confiança dos mercados (pág.29); e embora reconhecendo que medidas como as eurobonds não recolheram grande apoio, o FMI afirma que mecanismos de partilha de risco na zona euro são importantes para quebrar a ligação entre as dívidas soberanas e as debilidades do sector financeiro (pág.15).

Mesmo as consolidações orçamentais feitas predominantemente pelo lado da despesa são agora objecto de reavaliação, visto que novos estudos sugerem um efeito de aumento das desigualdades, reconhecendo-se que uma desigualdade elevada compromete o crescimento (uma conclusão, curiosamente, partilhada com a Oxfam). O FMI sugere mesmo que “uma maior parcela dos encargos com o ajustamento poderá ser suportada pelos ricos”, mediante taxação dos segmentos da população com rendimento mais elevado (pág.35). Por outro lado, o relatório reconhece validade ao argumento de que dado que parte da necessidade da consolidação fiscal foi causada pelos desmandos do sector financeiro, este deve comparticipar neste esforço através de um imposto sobre a sua actividade.

Reconhecendo que os países sob pressão dos mercados podem não ter alternativa ao frontloading, o relatório afirma textualmente que uma consolidação demasiado acelerada pode ter “um impacto dramático na actividade económica” e “consequências devastadoras” ao nível dos serviços prestados pelo Estado, pelo que preconiza que, mesmo nestes casos, existem “limites de velocidade” no ritmo do ajustamento (pág.31).

 

Numa altura em que o relatório do FMI afirma que os ajustamentos fiscais vistos como injustos não são politicamente sustentáveis, Pedro Passos Coelho, acossado por notícias de um segundo resgate a Portugal (que poderia ascender a 50 mil milhões de euros) e atarantado pela “derrota eleitoral nacional”, veio reafirmar que prosseguirá o caminho que tem vindo a trilhar desde que tomou posse, anunciando “sacrifícios para o futuro”. Parece haver aqui uma espécie de atracção pelo abismo (lamentavelmente, arrasta-nos com ele), um encarniçamento terapêutico (com remédios que agravam o padecimento), um ilusório esforço heróico e grandioso por uma causa sublime – a soberania da nação (já não há heróis, nem no voluntarismo, nem na visão), ou uma desmesurada cegueira ideológica. À noite, quando repousa da fatigante mas empolgante tarefa de regenerar Portugal, nos sonhos que pontuam o seu sono, aposto que ele se imaginará a discursar no Portugal Novo, o Portugal empobrecido mas virtuoso, socialmente destroçado mas financeiramente austero, repetindo com pundonor as palavras de ordem de que se orgulha: o país ajustado jamais precisará de ser resgatado!

 

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