SANGUE NO ASFALTO (MISTY)
Agosto 22, 2013
J.J. Faria Santos
Gato reclinado na berma da estrada (courtesy of www.bertc.com)
Imaginem a luz em Agosto, a luz matinal acompanhada por um calor tépido. Um homem faz o percurso diário, a pé, que o separa do posto de trabalho. Atravessa as mesmas passadeiras para peões, revê os mesmos rostos nos mesmos lugares, escuta os sons da cidade a fervilhar (um fervilhar algo preguiçoso, não sei se por causa de Agosto se por causa da cidade). Saiu de casa com uma melodia na cabeça, que ouvira na rádio - Misty , um tema da dupla Erroll Garner/Johnny Burke, que começa assim: Look at me / I’m as helpless as a kitten up a tree. A meio do trajecto, na faixa de rodagem, perto da igreja e do cemitério, a escassos metros de uma passadeira (parece que o simbolismo ou a ironia se atropelam nesta cena), depara com o cadáver de um gato acidentado. O impacto da viatura fora tal que o fizera gastar as suas setes vidas e, para além de eviscerado, o animal tinha a cabeça separada do resto do corpo.
Os 244 ossos e os 512 músculos conferem ao gato a agilidade e a flexibilidade para trepar afoitamente, mas a descida torna-se problemática. Como as extremidades das unhas formam uma espécie de semicírculo para dentro, não lhe proporcionam um apoio infalível para descer de cabeça para baixo e ele retrai-se. Já a forma como atravessa a estrada, oscila entre a displicência da lentidão e a velocidade inopinada e suicidária. Podemos pensar numa variação inicial para Misty. Qualquer coisa como Look at me / I’m as helpless as a kitten crossing the street .