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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

A RAPARIGA QUE AMAVA A PALAVRA NEVOEIRO

Fevereiro 14, 2013

J.J. Faria Santos

                           "Morning Fog and Sun" de John Leslie Breck

                                     (Courtesy of www.bertc.com)

 

“Não é maravilhosa? Ne-vo-ei-ro”, silabava ela. “Compara com o inglês: fog ! ”, rematava vitoriosamente como quem acabava de apresentar o argumento definitivo que não admitia contraditório. E os olhos brilhavam num rosto recortado por um cabelo curto encaracolado a encimar um corpo voluntarioso mas franzino.  Fog  assemelhava-se a uma onomatopeia e, por conseguinte, era uma palavra demasiado escassa para abarcar a atmosfera poética da bruma.

A rapariga que amava a palavra nevoeiro queria seguir Direito Internacional, era inteligente, ferozmente competitiva e relativamente popular. Registou com alguma simpatia o meu entusiasmo pela poesia de Vinicius de Moraes e desvalorizou o meu guilty pleasure da altura: best-sellers asquerosos de autores norte-americanos manhosos (não se lhe negue o dom da generosidade…).

Estávamos nos finais dos anos 80. Nos intervalos das aulas, jogávamos furiosamente às cartas em mesas de pedra no parque em frente à igreja (sim, é certo, achávamos que havia algo de transgressor ou sacrílego neste hábito…). A parceira de jogo da rapariga que amava a palavra nevoeiro era a sua grande amiga – uma criatura fria e elegante, que fazia deslizar os naipes pela mesa com a sofisticação de uma vamp  e a impiedade de um pistoleiro no faroeste. Reencontrei esta sua amiga um ano mais tarde num bar da Foz do Douro. Olhámo-nos (com surpresa ela, com curiosidade eu) e ignorámo-nos cordialmente.

A jogatana acabava com o toque de chamada. Enfim, talvez nem sempre… As aulas de Filosofia eram um must. Enquanto a minha amiga C. , tirando partido dos nossos dois anos de iniciação à língua alemã, procurava arregimentar-me para convencer toda a gente a pronunciar Fichta  e não Fichte  (explicando que um e no fim de uma palavra se lê a ), o professor afastava-se com brio das teses de Nietzsche e analisava com pundonor as letras das canções dos Heróis do Mar. Nas filas de trás, comia-se (batatas fritas) e consumia-se com empenho a imprensa internacional (as páginas centrais da Playboy).

A rapariga que amava a palavra nevoeiro permanece, sob a forma de um episódio ternurento, na minha memória. E o que é a memória senão uma forma de nevoeiro? Cerrado ou descerrado.

 

 

 

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