UM CONTO DE NATAL (III)
Dezembro 20, 2012
J.J. Faria Santos
Imagem: Freefoto.com
3. Marina
Descalçou os sapatos, que tombaram cada um para o seu lado, deixou que os dedos dos pés desbravassem caminho por entre a carpete farfalhuda e pousou os sacos no chão. Deixou-se cair de costas para o sofá, que lhe amorteceu a queda com um suplemento de conforto providenciado pelas almofadas displicentemente distribuídas. Todo o cenário gritava Natal, dos adereços mais sofisticados aos mais utilitários. Era a árvore, de um minimalismo sedutor, eram as velas aromáticas em tom carmim, o arranjo floral na mesa de café, até os sacos do supermercado. Sentia-se demasiado cansada para se erguer, para se dirigir à cozinha, para enfiar no microondas o chop suey pré-congelado. Teria forças para dai a pouco tomar um banho regenerador, enfiar o seu vestido vermelho, as suas amadas botas de pele de crocodilo, e, conduzindo o carro que deixara ousadamente mal estacionado, partir de encontro a uma celebração do Natal presente de uma relação com escasso futuro? “Ah! A angústia das mulheres divorciadas, hesitantes entre o pavor da solidão e o receio da reincidência no falhanço…”, pensou, concluindo que a fadiga não lhe ceifara a saudável tendência para a auto-paródia.
O toque soara quando as pálpebras, como uma cortina que teimosamente insistisse em sabotar o espectáculo em cena, ameaçavam cobrir os seus olhos rendidos à indolência. Ponderou mantê-los semicerrados e desligar ostensivamente o telemóvel. E se fosse ele a comunicar alguma alteração de última hora? Tinha uma tendência lamentável para atrair imprevistos e reinventar roteiros, algo que ela achava atraente num jovem macho mas sintoma de imaturidade num homem feito. Quem mais poderia ser? Lana? Pouco provável. Falara com a irmã de manhã, e ela deixara bem explícito que tinha grandes planos para a noite que dispensavam a sua cumplicidade e muito mais a sua participação.
Não reconheceu o número. A sua voz soou velada e arrastada em contraste com a agitação amordaçada do outro lado. Palavras atiradas de supetão entravam algo intrusivamente no seu pavilhão auricular, e teve que abrir bem os olhos para processar a informação numa equívoca troca de sentidos.
“O que é que queres dizer com isso de ela ir fazer alguma coisa estúpida? Eu faço imensas coisas estúpidas todos os dias…o que é que isso tem de irremediável?”. Ele não precisou de responder. Ela percebera.
(Continua)