RETRATO DO BLOGGER QUANDO CRIANÇA
Julho 19, 2012
J.J. Faria Santos
Que significam as sombras que projectamos? São um testemunho do presente, um rasto do passado ou o embrião do futuro possível? São o reflexo de uma unicidade que se entrega à luz – a vida – ou a evidência de que, mesmo que estejamos pacificados com as escolhas que fizemos, permanece em nós o espectro do que poderíamos ter sido. O que resta da infância e da adolescência? Fragmentos. Um remate num jogo de futebol que bateu no poste; partidas de matraquilhos num café manhoso; os westerns na televisão ( o puto a berrar “Shane! Shane!” e, noutra película, John Wayne, heróico e cambaleante a fustigar os bandidos) vistos na companhia do meu pai (e mais tarde o “Dallas” ); as homéricas discussões políticas envolvendo o meu avô e o meu tio, em tempos de militância, fervor e convicções inabaláveis; ver com o avô o “Reviver o Passado em Brideshead” , e também rirmos os dois, à gargalhada, a ver o “Pato com Laranja”, comédia italiana que escandalizou os puritanos, numa cena que envolvia a picada de uma abelha no rabo de uma beldade; e as tardes, mais ou menos solitárias, a ler e a ouvir música, toda a música, da anglo-saxónica à francesa, do jazz à clássica, passando pela portuguesa (na Rádio Porto escutava-se Simone de Oliveira, com frequência, num tema em que narrava a astúcia de um homem adúltero que entrava de madrugada em casa, subrepticiamente, e mexia nos ponteiros do relógio do quarto para que se a mulher acordasse pensasse que ainda era cedo. E ela fingia que dormia). Na escola, numa época ainda não contaminada pela obsessão pelas marcas e pela exibição do estatuto, exercitava-se a construção de redes de sociabilidade e destrinçava-se entre as diferentes formas de afecto. Ou tentava-se. Com paixão, ímpeto e atabalhoamento, como é natural na idade das descobertas. E, no entanto, é possível ser cínico, digamos, aos treze? E permitir que uma mistura de comodismo, egoísmo e falta de fé passe por maturidade precoce?
Revejo-me na luz e na sombra deste instantâneo de perfil, algures na primeira década de vida. E no olhar sereno, mesmo que esforçadamente sereno, num rosto sem esboço de sorriso, numa pose que não é impositiva nem recatada. Sem euforia, sem drama, sem histrionismo.