O DIA EM QUE A VIDA PAROU
Abril 03, 2011
J.J. Faria Santos
Não é de gestos exuberantes, nem tiradas dramáticas. Vive a vida com simplicidade e sobriedade. Pode dizer-se que se rege por valores tradicionais (apego à família, prática religiosa), mas que, no campo dos afectos, não hesitou em arriscar rupturas, inevitavelmente dolorosas, com pessoas próximas e modos de vida instituídos. Procurou e procura a felicidade, não com o afinco e a irredutibilidade dos convertidos, mas sim com a tranquilidade dos que reconhecem a sua transitoriedade, ou, pelo menos, a impossibilidade de a encarar como um direito adquirido. Bruscamente no mês passado descobriu que tinha um cancro. Anunciou-o com a suavidade habitual, talvez com um certo requebro na voz, com a expressão taciturna de sempre. Enunciou os passos que já dera, relacionados com os assuntos triviais do dia-a-dia, para a eventualidade do pior cenário se concretizar. Agarrando-se à vida, preparava-se para a morte. A fé que a amparava era demasiado ambivalente: e se a vontade do Senhor fosse que ela partisse deste mundo? Chorou. Com suavidade e contenção, quando toda a raiva era admissível.É usual falar-se da solidão do poder, mas não é maior a solidão da impotência?
Susan Sontag, no seu ensaio "A Doença como Metáfora", notou a prevalência da linguagem militar na descrição e no tratamento do cancro: a multiplicação das células cancerígenas é frequentemente comparada a uma invasão; a radioterapia assemelha-se a um bombardeamento com raios; e a quimioterapia tem ressonâncias de guerra química. Sontag recusa a metáfora, defendendo um "olhar mais depurado sobre a doença", mas é de guerra que acabamos por falar. De batalhas vencidas, conquistas provisórias e danos colaterais. E como à vitória nunca corresponde uma aniquilação, segue-se uma espécie de período de saúde condicional, durante o qual o mal conspira na sombra.
Numa espécie de prólogo ao seu ensaio, escreveu Susan Sontag: "Ao nascer, todos nós adquirimos uma dupla cidadania: a do reino da saúde e a do reino da doença". Que pena que não possamos renunciar a este estatuto. E que pena que o nosso inescapável encontro com a mortalidade não possa ocorrer apenas em circunstâncias de inalienável dignidade.