EUROBONDAGE
Junho 10, 2012
J.J. Faria Santos
Em termos sucintos, designa-se por bondage a prática sexual que consiste em amarrar o parceiro, num cardápio que pode incluir espancamentos, cortes e beliscões, normalmente utilizando um dress code que se limita a couro e latéx, e em que a gratificação advém do aproveitamento do binómio dominação/submissão. Aspectos importantes: o jogo tem de ser mutuamente consentido e deve existir uma palavra de segurança que salvaguarde a integridade física do submisso.
Num outro contexto, associado às relações laborais, ocorrem situações de debt bondage, que a APAV, no seu sítio na Internet, define assim: “Quando um trabalhador trabalha para pagar uma dívida ou um empréstimo. O empregador poderá providenciar comida e alojamento, mas o trabalhador não é pago pelo seu trabalho. O empregador pode ainda providenciar a comida ou alojamento a preços tão elevados que o trabalhador nunca conseguirá pagar a divida”.
O conceito que tem origens tão remotas como as antigas civilizações grega e romana persiste ainda hoje, sobretudo em países em desenvolvimento. Siddharth Kara, que conduziu uma investigação sobre formas de escravatura, calculou que no final de 2006 existiriam cerca de dezoito milhões de vítimas de debt bondage.
No passado dia cinco do corrente mês, escreveu Viriato Soromenho-Marques no Diário de Notícias: “Na verdade, os governantes de Lisboa, a quem os credores impuseram o programa, a estratégia, a táctica e o detalhe, quando dizem ‘que querem ir mais longe do que a troika’, funcionam como o escravo que, para diminuir a ferida narcísica da humilhação, se cola por excesso à pele do seu dono. O PM sonha o delirante programa da troika , como se fosse o seu sonho. O resultado é o pesadelo em que o País está a transformar-se”.
Que a (Des)União Europeia se tinha convertido no expoente máximo do maniqueísmo (os virtuosos do Norte contra os irresponsáveis do Sul) já tínhamos percebido; que o BCE não se conseguiria libertar das pressões da ortodoxia germânica já suspeitávamos; que a Comissão Europeia, como escreveu Paul De Grauwe, se transformou num “agente dos interesses das nações credoras” parece evidente; mas, e se, no seu excesso de zelo, o governo português estiver a resvalar para uma situação equivalente a debt bondage? Qual é o limite do “custe o que custar”? E se esse custo não só não impedir o avolumar da dívida pública, não só não nos abrir as portas dos mercados em Setembro de 2013, como ainda por cima nos privar das condições mínimas para uma vida condigna?
Em momentos de descompressão, podemos divertir-nos com a visão de uma Angela Merkel em versão dominatrix , de chicote em punho (ou então Christine Lagarde, menos roliça e mais sofisticada, com os seus acessórios Hermès, o seu vencimento livre de impostos e a sua compaixão selectiva pelas crianças africanas). Menos hilariante é a consciência de que estamos do lado dos submissos. Tem de haver uma diferença entre respeitar os compromissos fixados e a escolha acrítica do caminho e do período de tempo para os alcançar. Já tarda que quem representa Portugal pronuncie a palavra de segurança. Infelizmente, essa palavra não pode ser Europa. Que seja, então, Memória, Humanismo, Cultura ou Civilização.