Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

CHEGA DE FUTURO

Maio 25, 2025

J.J. Faria Santos

André_Ventura_VIVA_24_v2.jpg

“Se, antigamente, o jogo político consistia em afinar uma mensagem que unia, hoje em dia trata-se de desunir da maneira mais deslumbrante possível. Para se conquistar uma maioria, já não é preciso convergir para o centro, mas adicionar os extremos.” Pode esta citação de Giuliano da Empoli (“Os Engenheiros do Caos” – edição da Gradiva) sintetizar a estratégia eleitoral de Luís Montenegro? O que é certo é que a cedência da AD àquilo que Cas Mudde apelida de hibridização, visível na forma como a coligação explorou a questão da imigração (com direito a anúncio de deportações), se lhe trouxe ganhos, também reforçou a normalização do discurso do Chega. Sendo assim, a adição dos extremos acabou por ser limitada. E se contribuiu para um reforço da votação na AD e para a devastação do principal partido de esquerda, teve o dano colateral de reforçar a ameaça a curto prazo representada pelo partido de Ventura. Seja resultante de alterações sociais motivadas por mudanças estruturais na economia, seja motivada pela alteração de valores associados a mudanças culturais, teve como consequência a consciência por parte da classe política de que “a mobilização de preferências da direita radical é uma estratégia eleitoralmente viável”. (Vicente Valentim – O Fim da Vergonha – edição da Gradiva)

 

Cordão sanitário ou negociação à la carte, eis as opções ao dispor do primeiro-ministro, que recorre sistematicamente a um estilo de comunicação avarento e propositadamente ambíguo, ao mesmo tempo que vai alegando clareza e acusando de má-fé os interlocutores, porque só não percebe quem não quer perceber ou é estulto. Não só algum PSD como também as restantes direitas parecem querer sucumbir à estratégia de recorrer ao Chega como tropa de choque para materializar em termos práticos a hegemonia adquirida nas eleições. A ideia é esta: se a exclusão/contenção não resultou, porque não experimentar a incorporação? 

 

A tese dominante é a de que o Chega é um íman para os “ressentidos” que “perderam a vergonha”. O ressentimento é o estado de espírito (um rancor resultante de uma situação de inferioridade percepcionada como injusta) que legitimou a aposta no radicalismo, ancorado no nacionalismo e na defesa dos valores tradicionais. Claro que há magnanimidade, desde que enquadrada pelos termos definidos pelo Chega. Veja-se o elogio de Pedro Frazão ao médico imigrante europeu, que “fala português”, e que “salvou a vida de André Ventura”, quando este se debatia de forma heróica com a “queimação interna” que lavrava nas suas entranhas.

 

Será demasiado tarde para acreditar na transformação do ressentimento em re-sentimento? Este prefixo abre todo um campo de novas possibilidades. É usado para exprimir a ideia de “repetição, intensidade”, mas também de  “reciprocidade e movimento para trás”. Os Da Weasel, que cantaram o ”re-tratamento”, podiam dar uma ajuda. Também é possível que o povo, essa entidade abstracta constituída por milhões de indivíduos, a quem os comentadores políticos atribuem uma capacidade mediúnica de convergir de maneira a formar uma vontade colectiva imediatamente discernível, esteja ele próprio mais sintonizado com estas palavras de Antonin Artaud: “Nada me espera para pedir contas, mas eu tenho contas a pedir a alguns ignóbeis velhos labregos da doutrina, contas a pedir por retardarem a vida com os seus sentimentos, paixões, instituições”. (Antonin Artaud – “Os Sentimentos Atrasam” – Hiena Editora)

 

As recentes eleições não decretaram apenas a consolidação da alternância. Clãs inteiros, todos os grupos sociais, os homens até aos 55 anos e uma parcela significativa dos jovens professaram a sua fé em André Ventura. E é a fé que os vai salvar. O ressentimento desvaloriza a consistência das ideias, ou a viabilidade da sua concretização, e valoriza a performance. Mais do que um líder político, Ventura é para muitos uma espécie de líder espiritual, cujo discurso se parece inspirar no Deus do Antigo Testamento. O Chega de Ventura é um chega de futuro, apenas, ou também um Chega de futuro?

REFLEXÕES SOB O SIGNO DE AGUSTINA

Maio 17, 2025

J.J. Faria Santos

20250517_163214.jpg

“Iludir um povo é um crime; desiludi-lo é um erro”, escreveu Agustina Bessa-Luís. Talvez seja este o destino fatal da democracia e dos seus protagonistas, vassalos da lei e do Estado de direito, senhores de convicções, escravos dos meios de persuasão e reféns da construção de uma reputação que garanta o acesso ao poder. “Não é a lei que faz a reputação dum homem; a lei faz a decência, mas não a honestidade”, aventou Agustina. É a diferença entre a compostura e a probidade.

 

A maneira como Agustina retratou aquilo que se convencionou chamar de polarização foi a seguinte: “Os políticos nunca têm humor e agem dentro do princípio da sua razão e da desrazão dos outros.” E ninguém melhor para ilustrar esta premissa do que os políticos que se auto-excluem desta categoria, que se elevam ao lugar etéreo da depuração, a tecnocracia. Ora o tecnocrata, defende a escritora, “degrada o governo, porque conclui que ele deve imobilizar o espírito” e tem “um desprezo inveterado por tudo o que não seja um resultado numérico”.

 

Em dia de reflexão, o Presidente da República explicou que o mundo mudou por causa de Trump, que não votar seria “meter a cabeça na areia” e que, pelo contrário, votar é “contribuir para a estabilidade”. Ignoremos o “óbvio ululante” de ele ter sido o maior factor de instabilidade dos últimos anos, feito talvez explicável pela aplicação a contrario da máxima de Agustina que postula que “a mediocridade dos chefes faz a estabilidade dos Estados”. E para os que desesperam com a suposta degradação da qualidade da classe política, resta apostar no “talvez” que a nativa de Amarante colocou nesta frase: “Em toda a criatura humana há talvez a impossibilidade do invulgar”. Talvez não haja. Talvez haja a possibilidade da superação, da transcendência.

HOMENS DE POUCA FÉ

Maio 11, 2025

J.J. Faria Santos

20250510_174650.jpg

O cenário parece o ideal. Um incumbente que exerceu o cargo de primeiro-ministro como se estivesse numa campanha eleitoral permanente, distribuindo o excedente orçamental e criando uma ilusão de dinamismo e reformismo. Uma campanha eleitoral de facto dirigida com profissionalismo, desde o detalhe das arruadas em ruas estreitas para proporcionar imagens compactas de apoiantes até à convocatória dos ex-líderes como símbolo de unidade. Mensagens focadas procurando consolidar e alargar o espaço à direita, piscando o olho de forma pouco subtil à extrema-direita. Um candidato com uma notável falta de escrúpulos, disponível para usar como arma política a notificação de 18 000 imigrantes para abandonarem o país ou o exercício do direito à greve, e ainda para explorar a fé para reforçar o vínculo ao sentir português. Já para não falar da promiscuidade entre a “comunicação eleitoral e a comunicação governamental”, como notou Rita Figueiras no Público, a propósito da geminação da comemoração do 25 de Abril e do 1º de Maio ao som de Tony Carreira ft Luís Montenegro. Somando a isto o primeiro lugar da AD em todas as sondagens e a vitória de Montenegro em todos os concursos de Mister Simpatia face a Pedro Nuno Santos, é caso para perguntar por que razão não está a AD eufórica e confiante na “maioria maior”.

 

Mesmo que alguém da AD faça questão de proclamar que “cheira a vitória”, parece que há um défice de fé ou, pelo menos, uma dose cavalar de cautela. Há o pormenor nada despiciendo do constante “empate técnico”, e o número relativamente elevado de indecisos ou a incógnita da abstenção. E dados como os da última sondagem do ISCTE/ICS para o Expresso e a SIC: 67% dos inquiridos acham que “Portugal tem estado a ir pelo caminho errado”, 51% são da opinião de que o Governo fez um “mau trabalho” e 53% defendem que está “na altura de mudar”. Comentadores da área ideológica do Governo recusam-se a “dar por garantida uma vitória da AD” (Pedro Norton - Público), ou defendem que “com cerca de um quarto do eleitorado predisposto a votar nos outros partidos (…) da direita, parece do domínio dos milagres que a AD disponha da matemática necessária para ficar em primeiro lugar” (Francisco Mendes da Silva – Público). E há também o caso Spinumviva, que veio acentuar o perfil dissimulado, relutante e pouco claro de Montenegro na partilha de informação e nos esclarecimentos que presta.

 

Esta foi a semana em que dois episódios ambivalentes marcaram a agenda: a intervenção de Pedro Passos Coelho, desfazendo as credenciais reformistas de Montenegro, e o atestado de superioridade ética emitido por Cavaco Silva, involuntariamente hilariante, quer pelas circunstâncias que conduziram a eleições antecipadas, quer também pelo próprio perfil e tom professoral do atestante, como se se apresentasse ungido de isenção, autoridade e infalibilidade. Nas eleições legislativas de 2024, 21% dos eleitores só decidiram em quem iriam votar na última semana de campanha. Ainda há espaço para a persuasão.

MONTENEGRO PODERIA DISPARAR SOBRE ALGUÉM NA AVENIDA DA LIBERDADE QUE NÃO PERDERIA UM VOTO?

Maio 04, 2025

J.J. Faria Santos

Luís_Montenegro_2024_v2.jpg

O Luís “gosta muito de governar” e os portugueses parecem inclinados a “deixar o Luís trabalhar”. Como o português típico, o Luís preocupa-se com o futuro dos filhos, não aprecia que lhe devassem a “vida privada”, gosta do Tony Carreira e de comemorações dedicadas à família.

 

O Luís tem uma empresa familiar. A sede é na sua moradia em Espinho de mais de 800 m2 e oito casas de banho. O contacto da empresa era, até há muito pouco tempo, o seu telemóvel pessoal. Deixou de ser sócio da empresa a 30 de Junho de 2022, mas, juridicamente, a empresa continuou a ser dele, dado que faz parte dos bens comuns do casal. Digamos que não é plausível que, num momento de desarmonia familiar, a Carla Maria, caso fosse tão fã da Ágata como ele é fã do Tony Carreira, desatasse a trautear para o Luís Filipe: “Podes ficar com as jóias, o carro e a casa / Mas não ficas com a Spinumviva”.

 

Desde Julho de 2021 até muito recentemente, o grupo Solverde pagou à Spinumviva (logo a Montenegro) uma avença mensal de 4500 €, o que levou o insuspeito João Miguel Tavares e escrever no Público que “aquilo que temos na prática é um primeiro-ministro a ser pago por empresas privadas no exercício do seu cargo. Isto vai muito para além dos conflitos de interesse. É mesmo um enorme escândalo nacional”. Do que se conhece deste e de outros clientes, o dia a dia da empresa dependia de colaboradores externos, o que não impedia margens de lucro estratosféricas. A “colaboradora” Inês Varajão Borges admitiu que a actividade da empresa era “um trabalho que se autogeria”, a partir dos clientes angariados pelo Luís.

 

Se a hipótese de o Luís ter violado a lei da exclusividade de funções divide os juristas, não parece haver dúvida de que ele foi avarento e nada exaustivo no cumprimento das obrigações declarativas inerentes ao desempenho de cargos públicos. As suas inexactidões e omissões declarativas impediram ou adiaram o escrutínio de potenciais conflitos de interesse.

 

Tempos houve em que o partido sob a liderança do Luís escarrapachou num outdoor: “Corrupção e falta de ética. Já não dá para continuar”. Era no tempo em que o Luís “não tinha mesmo limites”. Tempos houve em que o Luís defendia que escolher a “vitimização” era “não responder a nada, não esclarecer nada”. Agora, o Luís é adepto da transparência gradual, a conta-gotas, e encara o escrutínio democrático como uma afronta à sua probidade.

 

O grande trunfo do Luís é a sua ligação aos portugueses. Ele poderia disparar sobre alguém na Avenida da Liberdade (ou no Martim Moniz) que não perderia um voto. Os líderes tradicionais almejam convencer pelo dom da palavra, pela eloquência; o Luís, num patamar superior, inspira pelo silêncio, pela economia das palavras. Ele confia que os agravos, as desconfianças da elite e as agressões da bolha mediática serão trucidadas pelo sufrágio popular. Purificado e relegitimado o grande líder, teremos então um perpétuo “S. Bento em Família”. “Deixa a gente ser feliz / Deixa o Luís trabalhar/ Que um novo futuro vai acontecer”, cantar-se-á numa apoteose de fé e paroxismo. No dia 18 de Maio, longe da Cova da Iria, na sede da Spinumviva, celebrar-se-á o início do “novo futuro”, confiando que os esqueletos do passado estarão definitivamente enterrados. A menos que o inesperado aconteça.

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2015
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2014
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2013
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2012
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2011
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub