A ENTREVISTA DO ENTERTAINER AO PRIMEIRO-MINISTRO FOI FUNTÁSTICA
Março 29, 2025
J.J. Faria Santos
O primeiro-ministro foi entrevistado por uma pessoa que “confia” nele e que nas últimas eleições, “por ter memória”, votou “pela mudança”. Luís Montenegro aprecia as entrevistas cozy, conduzidas por correligionários, sejam eles a inefável Maria João Avillez, com a indisfarçável cumplicidade com que questiona os que aprecia, ou o flamboyant Manuel Luís Goucha, que, denotando preparação nas entrevistas que conduz, privilegia, naturalmente, um registo lúdico.
Acontece que, no entanto, Goucha não resistiu a duas ou três ferroadas nos primeiros minutos da entrevista, antes de ela se ter deslocado quase definitivamente para um território intimista, propício a captar ou consolidar o voto do segmento das donas de casa e dos reformados. Logo a abrir, evocando uma polémica com a comunicação social, Manuel Luís Goucha, com o ar divertido de quem vai largar uma provocação menor, advertiu o seu entrevistado nestes termos: “Deixe-me dizer-lhe que no meu auricular eu só ouço os tempos. 40 minutos para esta entrevista.” Um pouco mais à frente, quando o primeiro-ministro resumia a embrulhada em que se deixou enredar com a frase “Eu sou acusado de ter trabalhado”, o entertainer largou um “Mas não é por aí que vêm os problemas…”, para logo de seguida, suavizando o contraditório, dizer-lhe: “O senhor não é suspeito de coisa alguma.”
Montenegro sabe de onde é que “vêm os problemas”. De tal maneira que, a propósito da passagem da quota da Spinumviva, começa a elaborar. “Podia-me eu ter lembrado que pelo facto de estar casado no regime de comunhão de adquiridos, de alguma maneira…”, o que motivou uma interpelação de Goucha, entre o folgazão e o incrédulo: “Um advogado não se lembrou disso?” A resposta, ao lado, foi esta: “Não, porque é assim: eu estava-me a desvincular, como me desvinculei, completamente da actividade daquela empresa. E a empresa tinha uma actividade regular que não precisava de mim.”
A entrevista decorreu num tom amigável de tertúlia, sempre pontuado pelo omnipresente sorriso que aflora aos lábios do primeiro-ministro, cujo propósito poderá ser transmitir descontracção, mas que com frequência adquire um travo trocista. Foi, por isso, algo a despropósito e fora do contexto, que surgiu a cena da “exaltação”, o momento em que Montenegro bradou: “Eu não posso ser associado a nenhum comportamento de corrupção porque eu nunca tive nenhum acto de corrupção. Nunca! (…) Eu nunca fui suspeito nem posso ser. Peço muita desculpa. Isto não pode acontecer. E quem disser o contrário, tem de provar. Eu não posso aceitar a ninguém que diga uma coisa dessas!” Caso Montenegro estivesse a usar um auricular, eu diria que um assessor lhe teria soprado ao ouvido que não se esquecesse da cena da indignação. A inserção algo despropositada desta rábula na entrevista e a flutuação no tom, calibrado para transmitir agastamento sem se tornar demasiado estridente, contribuíram para uma sensação de artificialidade.
Manuel Carvalho escreveu no Público que “não há político contemporâneo que saiba usar melhor o malabarismo ou a sonsice em proveito próprio que Luís Montenegro”. “Corrupção e falta de ética, já não dá para continuar”, clamava um cartaz da AD na eleição em que Goucha votou pela mudança. A entrevista do entertainer ao primeiro-ministro foi funtástica. Montenegro clamou que nunca teve “nenhum acto de corrupção”. A ética, agora, deve ser como o passado: um país estrangeiro, e o PSD, já sabemos, é o “partido mais português de Portugal”.