8 meses depois da tomada de posse parece começar a dissipar-se o estado de graça, bem como a percepção do dinamismo, do Governo, ou, como escreveu Manuel Carvalho no Público, a “sensação de energia e determinação”. O problema das “sensações” e das “percepções” (como a da criminalidade ou a da corrupção) é que criam um biombo cuja opacidade se reduz com a exposição dos factos. E se houve quem saudasse as alterações relacionadas com a imigração, logo surgiu quem alertasse para as implicações de extinguir permanentemente as Manifestações de Interesse. E se o discurso da “imigração descontrolada” ganhou adeptos, logo os empresários se apressaram a avisar que fechar as portas à imigração seria “devastador para a economia”. Da mesma forma, se houve quem valorizasse a agenda anticorrupção apresentada pela ministra da Justiça, outros notaram o carácter genérico das medidas e a profusão dos verbos “operacionalizar”, “generalizar”, “regulamentar”. “aprofundar”, “reforçar”, “alargar” e “promover”, para além do sempre útil “publicitar”.
Na área da Saúde, a ministra é um caso paradigmático de sucessivos tiros no pé. Com um talento inato para culpabilizar subordinados, pedir planos de acção a entidades erradas e demitir com estrondo, Ana Paula Martins conseguiu apresentar um PowerPoint intitulado Plano de Emergência e Transformação na Saúde, cujo terceiro “eixo estratégico” aborda os “cuidados urgentes e emergentes”, sem que quaisquer das medidas “urgentes, prioritárias e estruturantes” “reforcem” os efectivos do INEM ou “aprofundem” a reestruturação dos serviços de emergência. Este facto, combinado com a incapacidade para interpretar mensagens de correio electrónico que lhe chegam ao gabinete, teve como consequência 11 mortes e um risco sério de descredibilizar um área vital (literalmente) do Serviço Nacional de Saúde.
Bem pode o primeiro-ministro perorar que “a consequência política, quando há problemas, é resolvê-los (…) não é mudar pessoas para o problema continuar”. Não é isto que impede que, dentro do próprio partido, se murmure que, por exemplo, a ministra da Administração Interna, com as suas sucessivas gafes e dificuldades de comunicação, não tem condições políticas para se manter no cargo. A contribuir para o deslustrar da performance governativa, para além da insólita desvalorização do ministro da Educação do intuito do primeiro-ministro, anunciado em tom inflamado no congresso do PSD, de libertar a disciplina de Cidadania das “amarras ideológicas”, há que registar o inusitado ataque de fúria de Paulo Rangel, destratando os militares (e os burros e os camelos).
A 22 de Agosto, já Manuel Carvalho escrevia no Público que “basta uma ligeira oscilação da conjuntura para que a estabilidade desabe”, e que “Montenegro dá ares de rico a acender charutos com notas de cem”. Quase dois meses depois, no Expresso, o insuspeito Luís Marques, comentando a discrepância entre o crescimento da economia previsto no programa do PSD e o que constava nos dados transmitidos a Bruxelas, notava que “o Governo prometeu o paraíso à economia portuguesa, mas o que lhe está a dar é o inferno do crescimento medíocre”. 4 dias depois, outra figura próxima do PSD, Pedro Norton, escrevia no Público que Montenegro se revelou uma espécie de mestre da táctica, que “se limitou a gerir o agora”, “demasiado preocupado a tratar da sua sobrevivência para ter vagar para cuidar do futuro de Portugal”, concluindo que “não vai ser possível continuar a entreter-nos muito mais tempo com estas artes”.
Nestes oito meses, o primeiro-ministro, avaro com a palavra e devoto do silêncio, teve tempo para, nas suas próprias palavras, ser “provocatório q.b.”. Gozando de uma cobertura escandalosamente benevolente, quando não laudatória, da generalidade dos meios de comunicação social, mesmo assim Luís Montenegro ensaiou explicar aos jornalistas como exercer a sua profissão. Que ele prefere num estilo “menos ofegante” e sem que alguém sopre perguntas pelo auricular. Face à reacção da classe jornalística, invocou que havia “um contexto” para as suas palavras, em defesa do que ele apelida de “jornalismo ‘puro’”.
Os dias em que se limitou a gerir o excedente orçamental chegaram ao fim. A retórica já não chega e a táctica é um recurso limitado. A herança do governo anterior pode ser invocada como mecanismo exculpatório, mas é curto para quem implementou planos de emergência e reclama “estar a agir a alta velocidade”. Os arautos das “reformas estruturais” exigirão em breve medidas radicais que excedem a capacidade do capital político do Governo. A menos que negociasse com o Chega (mesmo com custos reputacionais), mas “o não é não”. Será? Como concretizar o “espírito reformista e transformador” que reclama? O ponto de fuga ideal seria a vitimização que conduziria a eleições e a um reforço parlamentar, com a colaboração activa de um Presidente da República conivente. Até lá é aguentar, combinar o silêncio trabalhador de Montenegro com a doutrinação bicéfala (o parlapiê básico ofegante de Hugo Soares e as alegações formatadas estilo sopro de auricular do ministro da propaganda Leitão Amaro) e, logo que possível, livrar-se dos activos tóxicos. E, last but not least, rezar para que a oposição não se credibilize e que a política económica proteccionista de Trump não obrigue a travar a generosidade que alimenta as corporações.