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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

A BELEZA, A BONDADE, A OROLOGIA E A UROLOGIA

Agosto 24, 2024

J.J. Faria Santos

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É certo que Margarida Blasco, ministra da Administração Interna, ganhou, quando liderava o SIS, o cognome de “Margarida Fiasco”, mas daí a concluir que acabou de confundir uma especialidade médica com a parte da geografia que estuda a formação das montanhas vai uma certa distância. Nem sequer, digamos, uma suposta eventual associação freudiana entre a elevação dos terrenos e o efeito hidráulico que ocorre no aparelho genital masculino autoriza tal conclusão. Na verdade, orografia e orologia são sinónimos e orologia e urologia são palavras homófonas.

 

A nomeação de Blasco gerou uma expectativa positiva. As suas passagens pelo SIS e pela IGAI foram marcadas por uma preocupação com a erradicação do racismo das forças de segurança e o combate às actividades criminosas no seio das autoridades policiais. No passado mês de Julho, declarou-se “perfeitamente intransigente” com os crimes de ódio e mostrou-se segura de que “a formação que está a ser dada vai retirar a fruta podre do grande cesto que são as forças de segurança”. Veremos se conseguirá evitar que a “podridão” alastre ou se será ela a cair de madura. No entretanto, podemos já concluir que, pelo menos quando se desvia do script ou resvala para a improvisação, aproxima-se do desastre comunicacional.

 

As declarações da ministra a propósito do incêndio na Madeira oscilaram entre o discurso de candidata a concurso de beleza e o argumentário de uma promotora turística. A sua piedosa proposição de “acabar com este fogo o mais depressa possível”, associada à caracterização de “uma ilha lindíssima” onde as “pessoas são muito boas” é o pináculo da vacuidade. Além de autorizar a conclusão, mais ou menos hilariante, de que, caso se tratasse de um arquipélago medonho com um índice de criminalidade elevado ou uma elevada taxa de sociopatas, seria aceitável que o fogo o consumisse.

 

Até ao momento, o que de mais relevante saiu da sua acção ministerial foi a valorização salarial dos polícias, em consonância com a estratégia de um “Governo viciado em passar cheques”, como o definiu Manuel Carvalho em artigo de opinião no Público de quinta-feira passada. Para Carvalho, a “sensação de energia e determinação” do Governo parece ter-se dissipado. De tal maneira que termina o artigo questionando, “querem governar para deixar uma marca de mudança e progresso para o país, ou continuarão limitados a passar cheques a tudo o que protesta ou mexe?”

 

Imagem: portugal.gov.pt

O PAI DA SENHORA MINISTRA

Agosto 18, 2024

J.J. Faria Santos

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O pai da senhora ministra é, nas imorredoiras palavras da compagne de route, entrevistadora extraordinaire e comentadora de alto coturno Maria João Avillez, um “fino analista político”, um “intelectual sólido”, um “homem civilizado” e um “comentador desassombrado”. O comentador é tão “desassombrado” que até já afirmou algo próximo da heresia, como a ideia de que “o cavaquismo foi importante, mas não mudou o destino do país”, e que “o soarismo foi importante e será o ‘ismo’ que a História perpetuará”.

 

O pai da senhora ministra admite que “tem muito passado” e “não tanto futuro quanto gostaria”. Diz-se um “homem livre e sem medo”, que “ama a liberdade acima de tudo”, politicamente estacionado na “fronteira da luta contra os populismos de direita ou de esquerda”. Outrora destacado responsável político na cúpula de um movimento armado de extrema-direita (até os “homens civilizados” precisam de uma pausa entre o bruto e o bestial), brilha agora como comentador num canal por cabo. Em Outubro de 2016, em entrevista à revista Sábado, fez questão de evocar as palavras do fundador do PSD: “Sá Carneiro dizia que eu era o melhor comentador, o Marcelo ficava um bocadinho ciumento”.

 

Recentemente, o pai da senhora ministra decidiu reclamar para si o papel de provedor da SIC Notícias, de guardião das boas práticas do jornalismo. Agastado com uma notícia da jornalista Vera Lúcia Arreigoso acerca do plano de emergência governamental para a Saúde, que alegadamente teria desrespeitado a regra básica de ouvir o ministério respectivo, o comentador jubilado, entre o arrogante e o paternalista, mimoseou Nelma Serpa Pinto com tiradas deste género: “Percebeu o que eu disse ou não quer perceber o que eu disse? Você não andou na escola de jornalismo?”

 

O tom com que o pai da senhora ministra disse “essa senhora chama-se Vera Arreigoso” soou a condenação à lista negra dos jornalistas que não são simpáticos para a causa (como a lendária Avillez). Como diria o ministro Rangel, não andará por aqui um perfume de “claustrofobia democrática”?

ABRENÚNCIO

Agosto 11, 2024

J.J. Faria Santos

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50% da bancada parlamentar do CDS-PP acha que a “única” forma de reverter a “liberalização da lei do aborto passa por um novo referendo”. E vê no recurso às taxas moderadoras uma forma de “limitar o acesso ao aborto”. E advoga a criação de “um fundo de emergência para famílias que pensam recorrer ao aborto por razões materiais”. (As razões imateriais não interessam, carecem de tangibilidade, diluem-se no abstracto). Em Fevereiro deste ano, no mesmo evento em que o deputado do Chega Pedro Frazão referiu que “a esquerda marxista e assassina tem ganhado essa batalha cultural”, Paulo Núncio já tinha defendido que “a esquerda tem dado passos para atacar a vida e a família”. 50% da bancada parlamentar do CDS-PP pensa isto, mas apenas a “título pessoal”.

 

Paulo Núncio é um cruzado, um soldado da resistência com ambições de reconquista de terreno do ideário cristão que ele vê sob ataque do secularismo e das ideologias malsãs, um defensor da vida e da família. Indignado com a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos (cuja origem remonta a uma civilização em relação à qual ele registará os hábitos dissolutos e contranatura - sexo improdutivo, homoerotismo, pederastia -, e na qual se usavam métodos contraceptivos e o recurso ao aborto era legal, com utilização de vários métodos), e também com a polémica que envolveu a pugilista Imane Khelif, escreveu ele na rede social X: “Depois do ataque ao Cristianismo, agora a tentativa de normalização da violência sobre as mulheres! Inaceitável!”

 

50% da bancada parlamentar do CDS-PP está particularmente habilitada para discorrer sobre a violência sobre as mulheres, que põe em causa a sua integridade física, o seu bem-estar e o seu livre-arbítrio, porque, como se sabe, impedi-las de fazer escolhas acerca da sua saúde reprodutiva, expô-las a situações degradantes e reduzi-las ao estatuto de fêmea reprodutora não é um acto violento. Será defender a vida não desde a concepção, mas segundo a concepção de quem se encontra grávido de farisaísmo. Porque Núncio poderia apenas ser um homem de convicções fortes e ideias inabaláveis, mas isso não lhe chega. Daí a aura de ungido, as vestes do sectário, o rosto da superioridade moral e a intolerância que o coloca em contramão com a compaixão que a religião que ele professa tanto valoriza.

 

Imagem: X de Paulo Núncio

DIVAGAÇÕES ESTIVAIS SOBRE TUDO E SOBRE NADA

Agosto 04, 2024

J.J. Faria Santos

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Shannen Doherty morreu no dia 13 do mês passado aos 53 anos. A Time chamou-lhe “a rapariga quintessencial da geração X”. E escreveu que a personagem que ela interpretava na série Beverly Hills 90210, Brenda Walsh, era uma “mistura volátil de angústia da geração X, fragilidade juvenil e perseverança feminista”.

 

A série passou em Portugal entre 1992 e 1997, com a sua mistura de glamour endinheirado, drama geracional, beleza juvenil e apelo à rebeldia mitigada. Eu, que nunca me impressiono com a riqueza e o poder (ao contrário do que sucede com a beleza e a inteligência – e a conjugação destas duas mais do que impressionado, deixa-me subjugado), desdenhei da ostentação material e concentrei-me na riqueza emocional da Brenda e na rebeldia do Dylan McKay que o Luke Perry interpretava com ares de James Dean.

 

O problema era que, comparada com a série que tanto me impressionara em 1991/1992, Beverly Hills 90210 era um amuse-bouche desenxabido. Twin Peaks, a pièce de résistance, cuja acção se desenrolava numa pequena cidade, continha para além de drama, beleza juvenil e rebeldia, um suplemento de mistério e transgressão que mergulhava sem concessões no surrealismo.  Sherilyn Fenn (Audrey) e Lara Flynn Boyle (Donna) preenchiam com inegável talento a quota das sedutoras de serviço e James Marshall (James) arvorava aquele ar de desobediência e fragilidade do rebelde com todas as causas disposto a arcar com todas as consequências. No meio deste ambiente luxuriante, estimulante de sensações e sentimentos, quem é que quer saber da frivolidade dos automóveis descapotáveis, das  roupas de marca ou das festas da alta- roda?  

 

Não ignoro a importância dos bens materiais para a sobrevivência, para o conforto e para a satisfação daquelas necessidades que na minha família, há gerações, se designam por “extravagâncias”. E calha bem que uma “extravagância” tanto possa ser um capricho como algo fora de comum. Simplesmente, não tenho nem talento, nem vontade, nem perseverança para acumular riqueza. Há duas décadas, o meu desejo se ganhasse um bónus financeiro inesperado era gastar tudo numa visita a uma livraria. Agora, nem isso. O simples facto de ter 3 ou 4 livros em lista de espera causa-me uma mistura de ansiedade e gulodice.

 

É até possível que este meu desprendimento tenha alguma coisa a ver com aquilo que Douglas Coupland no seu livro Geração X denomina de “menorismo: filosofia que permite que uma pessoa se reconcilie com a diminuição de esperanças de riqueza material”, dando o exemplo de alguém que deixou de querer ser importante e só quer encontrar a felicidade. O que seguramente posso fazer é confessar a minha simpatia por um outro conceito expresso por Coupland no livro citado, concretamente o de “substituto de estatuto”, que consiste em “usar um objecto cotado intelectualmente ou na moda em substituição de um outro que é apenas caro”. O exemplo dado é este: “Brian, deixaste o teu Camus no BMW do teu irmão”.

 

A ficção de Twin Peaks começava com a descoberta do corpo de Laura Palmer. A vida real da Brenda de Beverly Hills 90210 terminou com a rendição involuntária à eufemística “doença prolongada”. Douglas Coupland escreveu que “ou as nossas vidas têm história, ou não há maneiras de as levarmos a cabo”, mas não é de descartar que as vidas modernas sejam um pouco como aquelas ficções com enredo inexistente ou difuso. Dito de outro modo: a vida moderna não é um romance, é um livro de contos. E a felicidade, claro, é uma intermitência.  

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