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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA JUDICIAL

Dezembro 30, 2023

J.J. Faria Santos

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A temporada 2023/2024 está animada no campeonato do Ministério Público. Só nas últimas semanas, tivemos a notícia de que o procurador do Supremo pretende “acelerar” a investigação a António Costa, de que o Tribunal Criminal de Lisboa quer começar a julgar Sócrates em Março, e ainda de que no início de 2024 haverá novos arguidos, “entre eles políticos do denominado bloco central” (citando o Expresso) no chamado Caso Tutti- Frutti. Ontem, mesmo a tempo do réveillon, fomos informados de que o MP abriu um inquérito relacionado com os benefícios fiscais atribuídos à casa de Luís Montenegro. Recentemente, ficámos também a saber que a Operação Influencer foi dividida em três inquéritos distintos e que as respectivas equipas foram reforçadas. Equipas reforçadas normalmente garantem o título, ou pelo menos acréscimo de competitividade. Mas que título? O de campeão da acção penal sem pôr em causa a legalidade democrática, deseja-se.

 

Os sintomas de politização da justiça são mais do que as fugas seleccionadas de peças processuais, os timings insólitos de acção ou os procedimentos levianos e até potencialmente ofensivos de direitos e garantias. Como escreveu Pacheco Pereira na revista Sábado: “A politização dá-se por via da actuação de magistrados e juízes a partir de uma ideologia corporativa, aquilo a que se tem chamado de ‘justicialismo’, em que uma profissão se torna uma casta, dotada de uma visão do mundo em que os ‘outros’ são eticamente menores, actuam por interesses impuros, e precisam de ser postos na ordem pela acção de pessoas impolutas, dedicadas a todas as causas nobres, inflexíveis a qualquer tentação”.

 

Uma instituição habituada a ser “processualmente autónoma”, com pouco controlo efectivo, ficou em estado de choque com um artigo da procuradora-geral adjunta Maria José Fernandes, que apelava ao “exercício da autocrítica”, censurava as buscas sem utilidade e o conluio com “um certo jornalismo que segue as peripécias da corrupção”, e deplorava os departamentos onde “pontuam algumas prima donnas intocáveis e inamovíveis”. Maria José Fernandes foi “premiada” com um processo. O MP não aprecia “whistleblowers”. E Lucília Gago ter-se-á sentido atacada por colegas, também por figuras relevantes do MP como Euclides Dâmaso e António Cluny.

 

Teresa Almeida, juíza do Supremo e que durante mais de 30 anos foi magistrada do Ministério Público, entrevistada pelo diário Público, frisou a necessidade de se preservar as instituições do Estado de direito e, indo ao encontro da tese de Pacheco Pereira, censurou “a banalização da corrupção. Vamos atrás de tudo, são todos corruptos. Somos os puros, eles os impuros”. Contrariando a tese aparentemente dominante nas cúpulas do MP, a de que as críticas serão um ataque à autonomia da instituição, Teresa Almeida lembra que “nos últimos vinte anos, as alterações estatutárias têm sempre sido no sentido de algum reforço da autonomia e da independência”. A conclusão a retirar parece-me óbvia: é maior o risco de interferência ilegítima do poder judicial nas escolhas soberanas do cidadão eleitor do que de condicionamento da acção judicial por parte dos órgãos políticos. Ignorar este risco é persistir num ensaio sobre a cegueira judicial.

DA FELICIDADE E DO NATAL

Dezembro 23, 2023

J.J. Faria Santos

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“Muita gente é incapaz de dizer a palavra ‘felicidade’ sem ironia ou distância”, escreveu Pedro Mexia no Expresso. Eu, cultor empenhado da ironia, jamais seria capaz de a manejar para delapidar a felicidade. Já manter em relação a esta uma mistura de reverência e cepticismo, não nego. Não que me veja enredado num trágico e melodramático estado de tristeza avassaladora. Simplesmente, não creio num estado de beatitude perpétua. Do meu ponto de vista, a felicidade ocorre em fogachos arrebatadores, que até se podem repetir, mas uma vida é sobretudo tranquilidade e harmonia, interrompidas por inquietações e rupturas.

 

Acolho o Natal com um gosto perfeitamente comum. Aprecio os enfeites e as luzes nas lojas, nas habitações e nas ruas. Ouço as canções da época sem me cansar – dos clássicos Have Yourself a Merry Little Christmas e Blue Christmas até aos mais contemporâneos Driving Home for Christmas e Last Christmas. Troco saudações com familiares, amigos e conhecidos que julgo irem além do protocolo, isto é, não são apenas uma manifestação de civismo ou gentileza porque incluem uma genuína vontade de que o fogacho se exiba no seu glorioso fulgor.

 

Não prescindo de ser eu a montar a árvore de Natal. Por se construída com adornos muito diversificados, aposto na continuidade cromática para lhe conferir alguma homogeneidade, em tons dourados e vermelhos. Que eu retire tanto prazer da sua montagem como da posterior desmontagem, na segunda semana de Janeiro do novo ano, talvez prove a minha disponibilidade para aceitar os ciclos da passagem do tempo, de que os rituais natalícios são mais um marcador.

 

O Natal é sempre, para mim, uma complexa mas aprazível mistura de celebração e nostalgia. Que este sentimento possa ser como o amor de um dos sonetos de Vinicius de Moraes: não “imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”. E para que estejamos à altura do desafio do  renovar da esperança que cada ano traz, nada como ter a ousadia de contrariar este conselho sob a forma de poema do José Tolentino Mendonça (que, sabiamente, até parece querer instigar-nos à transgressão): “Mesmo que faça frio / não aproximes do fogo / um coração de neve”.

 

Foto: Marc N. Belanger (Wikimedia Commons)

PROGNÓSTICOS ANTES DO FIM DO JOGO

Dezembro 17, 2023

J.J. Faria Santos

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Os comentadores políticos adoram fazer prognósticos. Sacam das suas grelhas analíticas, “auscultam” o sentir do povo e desatam a desafiar a falibilidade e a lógica com conselhos e proclamações definitivas. E com 2024 à porta, que melhor altura para concorrer com videntes e astrólogos? Quando, em 8 de Janeiro do corrente ano, Ana Sá Lopes escreveu no Público – “Há uma – e só uma – possibilidade de o PS resistir às próximas eleições. António Costa demitir-se tão cedo quanto possível e ir fazer uma travessia no deserto para em 2024 ser escolhido para presidente do Conselho Europeu” – estava longe de imaginar um cenário em que, no dizer de Rui Rio, “o PM foi demitido pela PGR”. Nesse mesmo artigo, defendeu que Pedro Nuno Santos seria o mais bem colocado na corrida à sucessão, embora tal não garantisse a manutenção do poder socialista à frente do país. 11 meses depois, empolgada com a verve de Montenegro num congresso partidário, Ana Sá Lopes sintetizou o seu pensamento no seguinte título: “Montenegro ‘mata’ Passos, faz o seu melhor discurso e pode ganhar”. (Entretanto, hoje, já escreve no Público que “Montenegro não aproveitou o embalo do Congresso”.)

 

Apesar de tudo, e porventura na linha da tese clássica de que são os governos que desbaratam o poder e não é a oposição que o conquista, até ao momento não se vislumbra uma onda de entusiasmo pelas propostas de Montenegro. E não é certo como é que os eleitores ponderarão na cabina de voto factores como a crise da habitação, os constrangimentos na saúde, os aumentos nos rendimentos (pensões e salário mínimo) e a descida do desemprego, tudo isto no contexto das chamadas “contas certas”. Se para Ricardo Costa, a três meses das eleições, “o mais provável é o PS vencer as eleições”, para Francisco Mendes da Silva “Montenegro é hoje o mais provável futuro primeiro-ministro”.

 

Para um subgrupo de analistas, a alternância é um imperativo por si só. Por exemplo, Bárbara Reis, indignada com o dinheiro vivo de Vítor Escária, titulou uma das suas colunas de Novembro passado com um definitivo “O PS precisa de ir para a oposição”. Justificando esta asserção, explicou que o caso era “tão grave” que era importante apurar se esta “forma de vida faz parte da cultura do PS, (…) se a bioestrutura do partido está infectada”. Neste subgrupo há quem defenda a mudança para pior. Veja-se o exemplo de Henrique Monteiro no Expresso: “E se o outro lado é pior? Pode ser, mas o efeito de mudança pode e deve exercer-se.” E o eleitor comum, estará apostado em mudar para pior em nome da alternância?

 

E que papel desempenhará nas cogitações dos eleitores o legado de António Costa? Num artigo que até nem é lisonjeiro, Manuel Carvalho escreveu no Público que o actual primeiro-ministro “não deixa de ser uma referência de estabilidade, ponderação e contas certas”. E acrescentou que “não há grandes razões para celebrar a queda. Pelo contrário, é muito provável que ainda venhamos a ter saudades de António Costa”.  Talvez não seja caso para tanto. É que ele vai andar por aí.

OPERAÇÃO NEPO INFLUENCER

Dezembro 10, 2023

J.J. Faria Santos

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Afinal havia um e-mail. Enviado pelo dr. Nuno ao Presidente Marcelo Nuno. E a operação nepo influencer teve início. Sob o signo da generosidade, do impulso humanista. “Quis ser solidário”, explicou o pai acerca das intenções do filho. E apesar do procedimento standard nestas situações consistir no envio dos pedidos por parte do chefe da Casa Civil do Presidente para o chefe de gabinete do primeiro-ministro, neste caso tivemos uma assessora presidencial a telefonar para o Hospital de Santa Maria, o dr. Nuno a confirmar e reconfirmar informações com a assessora e o chefe da Casa Civil e, por fim, o mesmo dr. Nuno a reunir com um secretário de Estado. O mesmo governante que terá solicitado a marcação da primeira consulta das crianças ao Hospital de Santa Maria.

 

Num célebre discurso proferido em Maio deste ano, o Presidente da República afirmou: “Onde não há responsabilidade, na política, como na administração, não há autoridade, respeito, confiança, credibilidade. Um governante sabe que ao aceitar sê-lo aceita ser responsável por aquilo que faz e não faz e também por aquilo que fazem e não fazem aqueles que escolhe, e nos quais é suposto mandar.” O mesmo, quase ipsis verbis, pode ser dito de um Presidente que não se inibe de servir de correia de transmissão do generoso empenho do seu filho, formalizado através de um e-mail, não vendo nesta acção qualquer “privilégio”. E se, ainda por cima, o filho invocou o nome do pai nos diversos contactos que terá mantido? Marcelo espera que ele não o tenha feito, E acrescentou: “Se isso se viesse a comprovar, era totalmente inaceitável.” A formulação é algo arrevesada. Se se viesse a comprovar? Ou se tivesse ocorrido? Se tiver acontecido, mas não se conseguir provar, já não é “inaceitável”?

 

“Responsabilidade é mais do que pedir desculpa, virar a página e esquecer. É pagar por aquilo que se faz ou se deixou de fazer”, disse Marcelo em Maio. Responsabilidade é mais do que avivar a memória e circunscrever a sua acção a 10 dias. É assumir o peso do seu endosso nos acontecimentos subsequentes que conduziram à administração do tratamento às gémeas e pagar por isso, pode dizer-se em Dezembro. Porque como ele próprio reconheceu no dia 4 de Maio, não convém que os portugueses fiquem com a percepção de que “ninguém responde por nada”, ou de que “acabam por só responder, eventualmente, os mais pequenos”.

 

Imagem: captura de ecrã - site www.dn.pt

ESCUTAS INTERMITENTES A TERMO INCERTO

Dezembro 03, 2023

J.J. Faria Santos

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João Galamba é o socialista que a direita adora odiar. Assertivo, reactivo, abrasivo, intempestivo, sabemos agora que esteve sob escuta desde 2019, no âmbito da Operação Influencer, facto que alguns juristas contactados pelo Expresso consideram um abuso da Justiça. Aparentemente, estará afastada a hipótese de ilegalidade. O nº6 do artigo 187º do Código do Processo Penal  determina que “a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações são autorizadas pelo prazo máximo de três meses, renovável por períodos sujeitos ao mesmo limite, desde que se verifiquem os respectivos requisitos de admissibilidade”. Não há limite às renovações nem restrição temporal.

 

De acordo com o despacho do Ministério Público, refeições pagas por Afonso Salema, administrador da Start Campus, serviram para “criar ou reforçar” em João Galamba “um sentimento de permeabilidade e vontade de favorecer os interesses” daquela empresa no âmbito da construção do data center. Ignoramos se anos seguidos de escutas só terão resultado nestes indícios, que parecem manifestamente curtos e até risíveis, considerados por si só. Curiosamente, no âmbito da polémica do hidrogénio, numa demonstração de transparência, em Novembro de 2020, Galamba divulgou publicamente todas as reuniões e encontros que teve sobre a matéria entre Julho de 2019 e Outubro de 2020.

 

Devo confessar que a virulência e a intensidade dos ataques a João Galamba, numa estratégia tipo matilha, me causam repulsa, sobretudo quando sobrevalorizam traços de carácter como a impulsividade e a combatividade e ignoram testemunhos insuspeitos que atestam a sua competência e o seu conhecimento dos dossiers, assim como sublinham, como fez o presidente da APREN, o “trato afável”.

 

Não é possível encarar de ânimo leve esta sequência de escutas intermitentes a termo incerto. Estando em causa, como está, a lesão de direitos fundamentais como a “reserva da intimidade da vida privada e familiar” ou a “inviolabilidade do domicílio e do sigilo da correspondência e de outros meios de comunicação”, e não sendo permitido a utilização deste mecanismo como instrumento de prevenção de qualquer crime. Este procedimento fere todos os princípios de razoabilidade e proporcionalidade, para mais estando em causa a restrição de direitos, liberdades e garantias. E ameaça a própria democracia.

 

Se juntarmos a este caso das escutas a Galamba o episódio das buscas na casa de Rui Rio e a circunstância que conduziu à demissão de António Costa, somaremos indícios daquilo que Ferro Rodrigues chamou de “cultura justicialista e de ataque a figuras importantes nos partidos e no Estado”. Há uma leviandade nos juízos e uma leveza nos procedimentos que tresanda a impunidade. Como escreveu Pacheco Pereira no Público: o justicialismo “é uma intervenção no terreno da política democrática de uma concepção corporativa que encontra legitimação numa ideia de superioridade do seu poder assente numa bondade, honestidade e integridade atribuídas a uma casta, que precisa de ter inimigos para se justificar como superior”.

 

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