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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

A ESTRELA DE BELÉM GUIOU AS GÉMEAS BRASILEIRAS?

Novembro 26, 2023

J.J. Faria Santos

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Duas gémeas brasileiras com uma doença rara que, por não se encontrarem em “situação de pobreza” nem “desassistidas”, não obtiveram o medicamento através do Estado brasileiro, receberam em Portugal, através do SNS, um tratamento de 4 milhões de euros. Chegaram a Portugal com consulta marcada no Hospital de Santa Maria apesar de não possuírem número de utente. O tratamento foi inicialmente recusado pelos neuropediatras do hospital, confrontados com o facto de crianças que estavam a ser seguidas noutros países se deslocarem a Portugal com o propósito exclusivo de receberem o Zolgensma. António Levy Gomes, coordenador de neuropediatria do hospital, declarou à TVI que “o que corria nos corredores era que o tratamento ocorreu por influência do Presidente da República”, e que a ministra da Saúde teria conhecimento deste caso, visto que a secretária dela teria abordado o assunto com o serviço dele. Na Autorização de Utilização Excepcional, apresentada junto do Infarmed, conta que a consulta teria sido marcada pelo secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales.

 

Marta Temido nega ter interferido no caso. Lacerda Sales idem. Os anteriores presidente do Conselho de administração e director clínico  alegam não terem memória do caso concreto. O Presidente da República ameaçou processar quem o tentar envolver no enredo. Marcelo reconheceu que “apurou junto do chefe da Casa Civil que chegou um pedido”, tendo enviado uma carta para o chefe de gabinete do primeiro-ministro e outra para o gabinete do secretário de Estado das Comunidades Portuguesas. As gémeas obtiveram a nacionalidade portuguesa em 16 dias e a família adquiriu um imóvel em Lisboa. A mãe resumiu toda esta trama da seguinte forma: “Conheci a nora do Presidente, que conhecia o ministro da Saúde, que mandou um mail para o hospital”.

 

Questionado pela TVI se teria sido abordado pela família acerca deste caso, o Presidente respondeu, pausadamente, nestes termos: “A minha nora, o meu filho, se falaram comigo sobre esse caso, eu francamente eh…não me lembro.” A mesma estação de televisão, porém, reproduziu um e-mail enviado por Marcelo a Levy Gomes onde o Presidente escreveu: “No meio de milhentas pedidos e solicitações falou-me meu filho Nuno num caso específico de luso-brasileiros no Brasil. Disse-lhe logo de imediato que não havia privilégio algum para ninguém e por maioria de razão para filho de Presidente.”

 

Agora que o Ministério Público abriu um inquérito “contra desconhecidos”, talvez possamos vir a perceber se esta sucessão ágil e vertiginosa de procedimentos foi produto de um simplex aditivado, se os expedientes utilizados para a obtenção do tratamento, de ética duvidosa, não feriram a legalidade e, mais importante ainda, se houve ou não intervenção de um ou mais influencers. Só espero encarecidamente não vir a tomar conhecimento de um e-mail de um qualquer membro do Governo de teor aproximado a este (que é mero produto da minha pobre imaginação): “Não devemos permitir-nos perder o apoio político do PR. O filho dele intercedeu pelas gémeas. Se o humor dele se alterar, tudo fica perdido. Não estou a exagerar: ele é o nosso principal aliado político, mas pode transformar-se no nosso pior inimigo.”

 

Devo salvaguardar que Marcelo afirmou, em 4 de Novembro de 2023, o seguinte: “O que está em causa é se o Presidente interferiu ou não interferiu. Pediu uma cunha para que sucedesse uma solução favorável a uma pretensão de duas crianças doentes? Disse que não tinha feito isso. Se tivesse feito, tinha dito que fiz.” Um Presidente disponível a empenhar a sua palavra até ao extremo da auto-incriminação ou se sente acima de qualquer suspeita ou tem a vertigem do perigo.

 

Imagem: Captura de ecrã do site do jornal Folha de S. Paulo (www1.folha.uol.com.br)

PONTO. PARÁGRAFO. FIM. OU TALVEZ NÃO.

Novembro 19, 2023

J.J. Faria Santos

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Enquanto uns evocam o funcionamento normal de um processo judicial e outros não hesitam em falar em “golpe de Estado do MP” (Miguel Sousa Tavares e Vital Moreira), está em desenvolvimento uma batalha pelo controlo da narrativa centrada num aspecto fulcral: o que determinou o pedido de demissão do primeiro-ministro. E se para uns o factor decisivo foi a inclusão na nota da PGR da referência de que o próprio PM estava a ser investigado, para outros a circunstância dos factos em causa, associada ao envolvimento de um seu amigo e do seu chefe de gabinete, constituíam razões suficientes para não ter condições para continuar.

 

A batalha de spinning joga-se em diversos campos de batalha, Veja-se o caso do Expresso. Escarrapacha na primeira página “Lucília Gago escreveu parágrafo que demitiu Costa”, ao mesmo tempo que no interior pagina uma notícia com o título “Costa admite demissão antes do ‘parágrafo assassino’”. O PM teria dito logo ao PR que se a sua manutenção em funções pudesse prejudicar a investigação ou pessoas que lhe são próximas, poderia não ter condições para se manter no cargo. O jornal coloca um dos conselheiros de Estado, em discurso directo, a afirmar que no Conselho de Estado Costa “admitiu que, mesmo sem aquele parágrafo, podia ter que sair”, algo que não podemos confirmar visto não termos acesso à “verdade das actas”. A fazer fé na ênfase colocada nas diversas declarações feitas por António Costa após ter pedido a demissão, com sucessivos remoques à PGR, parece-me cristalino que o factor decisivo para a renúncia ao cargo foi o facto de ter tido conhecimento de estar a ser investigado.

 

Que a senhora procuradora-geral da República tenha ficado surpreendida pela demissão do primeiro-ministro revela, após 4 anos de investigação, o carácter preliminar ou fortuito das suspeitas e, ao mesmo tempo, uma falta de senso e avaliação da impossibilidade prática de governar um país estando sob suspeita e sem prazo para ela ser dissipada ou confirmada. Que o senhor Presidente da República (ou uma “fonte de Belém”, o que vai dar ao mesmo) tenha sentido necessidade de informar o Expresso de que “Marcelo não teve qualquer interferência no teor do comunicado da PGR” parece-me uma evidência da necessidade de negar o carácter ambíguo e sinuoso de tudo o que envolve a Presidência, com excepção das operações de charme que constituem as selfies e as visitas institucionais. Trata-se de esconjurar o medo. A PGR receava que, caso não informasse o país de que o PM estava a ser investigado, pudesse ser acusada de o estar a proteger; Marcelo receia que a sua decisão de convocar eleições possa ser interpretado como um favorecimento da sua família política.

 

Do lado de António Costa, parecem ter acabado os “paninhos quentes” em relação ao Presidente. Não só negou ter dito publicamente que teria solicitado a Marcelo que se reunisse com a PGR, como censurou a revelação pública de conversas entre os dois de uma forma incisiva e abrangente: “Não será por mim nem por heterónimos que escrevem nos jornais que vão ouvir dizer o que acontece nas conversas entre mim e o Presidente da República”.

 

Marcelo parece estar a incorrer no mesmo erro dos analistas e comentadores, o de supor que, demissionário e chefiando um governo de gestão durante meses, Costa se manteria impassível e seráfico a receber os golpes sem esboçar defesa ou contra-atacar. Como se ele se tivesse demitido de defender a sua honra pessoal, a sua probidade, o seu legado político e, sobretudo, o seu futuro.

 

Imagem: cartoon de António para o jornal Expresso

MINISTÉRIO PÚBLICO APRESENTA: A SUSPEITA

Novembro 13, 2023

J.J. Faria Santos

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O Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público garantiu ao Expresso ter “a certeza que tanto a procuradora-geral como o procurador que tem o caso foram apanhados de surpresa com a demissão de António Costa”. Porquê? Porque “numa fase muito inicial, de inquérito, em que não há qualquer presunção ou juízo de culpa por parte do Ministério Público, não é razão suficiente para um primeiro-ministro pedir a demissão”, disse. E acrescentou: “Há chefes de Governo no estrangeiro que estão a ser investigados e não se demitem.” Portanto, a sibilina nota final no comunicado da PGR seria uma adenda meramente informativa, apenas e só porque “a mera suspeita de um crime terá sempre de dar origem a um inquérito judicial” e Deus livre o MP da suspeita de proteger o PM. A leveza, sobranceria ou leviandade com que o MP considera natural o cenário de um primeiro-ministro sob suspeita ad aeternum parece o outro lado do espelho da irresponsabilidade e do sentimento de impunidade com que os putativos criminosos encaram o seu métier.

 

Para o comum dos mortais, a enxurrada de escutas e de factos que logo foram conhecidas (certamente ao abrigo de um qualquer direito preemptivo de defesa do MP que tem precedência informal sobre o segredo de justiça), resultaram, como habitualmente, numa amálgama de dados relativamente relevantes e acréscimos irrisórios e risíveis. Não se percebe bem se se ultrapassou o mero exercício de lobbying e se no conjunto de procedimentos administrativos conducentes à captação de investimento estrangeiro e de promoção de actividades económicas inovadoras a iniciativa política resultou em alterações legislativas protegidas pela legalidade ou feriu-a de algum modo. A indiciação do presidente da Câmara de Sines, a ocorrer pelos factos noticiados até ao momento, semeou a perplexidade, não se percebendo de que forma as contrapartidas por ele negociadas para a população constitui um ilícito criminal. A menos que o MP comece a vazar dados referentes a créditos injustificados nas contas bancárias dos suspeitos não é discernível que contrapartidas credíveis possam ter recebido e por que motivo.

 

Por mais grave que seja, e é, o facto de Vítor Escária guardar no seu gabinete na residência oficial do primeiro-ministro, dentro de livros e de caixas de vinho, 75 800 euros, qualquer que seja a origem deste montante, e que Diogo Lacerda Machado, lobista remunerado, tenha invocado (provavelmente em vão) repetidamente o nome do amigo, não há como escapar à circunstância de terem sido as linhas finais do comunicado da PGR que causaram a interrupção do mandato do Governo. Algo que nem uma oposição sem credibilidade nem um Presidente da República inquieto e especialista em ameaças veladas conseguiram.

 

Além de ter satisfeito a sua pulsão para os procedimentos burocráticos, o que a PGR terá conseguido de imediato foi também o impulsionar do populismo acéfalo e a degradação das condições do exercício da actividade política. Se os dirigentes políticos têm a obrigação de ser rigorosos na selecção dos colaboradores e determinados no combate à corrupção, compete aos órgãos judiciais afastar tentações de “operações mãos limpas” ou aparências de “golpe de Estado judiciário”. No blogue Causa Nossa, Vital Moreira citou a “fama de António Costa quanto à integridade política e ao combate à corrupção”, dizendo esperar que “o STJ não acrescente à irresponsabilidade do Ministério Público a procrastinação do inquérito”. Já no Público, António Barreto foi particularmente violento com Lucília Gago: “A procuradora-geral da República utiliza formas sibilinas e estranhas à clareza do direito e ao respeito pela dignidade das pessoas, com o que desencadeia uma crise política sem precedentes. Se não tiver razão, deve ser banida e afastada. Se tiver razão, tem de mudar o seu estilo, dado que o actual não é próprio da democracia e da justiça”. O tempo da justiça e o tempo da política colidem uma vez mais, acossados pelo tempo da informação. O resultado é um temporal, uma tempestade perfeita. A depressão Lucília.

VOCALIZOS SATÂNICOS

Novembro 05, 2023

J.J. Faria Santos

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Durante toda a sua carreira, Madonna evocou sempre, através da apropriação, do pastiche ou da recriação, a imagem da diva clássica. Carregou no sex-appeal, sublinhou a sofisticação e os looks de beleza etérea, mas desdenhou do mistério em favor de uma “autenticidade” que alimentava a provocação. O seu propósito nunca foi o de perpetuar uma imagem de perfeição imune ao esforço, ao temperamento ou à tirania dos genes. Com as inúmeras fotos glamorosas sempre conviveram os instantâneos da vida real, com Madonna em poses “naturais” desprovidas da intenção de alimentar um padrão de beleza inatingível e, sobretudo, imutável e imune às circunstâncias. As suas controversas intervenções estéticas são mais uma forma de expressão artística, de rebelião e autonomia. E mais uma vez, como se estivéssemos a ver os bastidores de um espectáculo (o espectáculo de si), pudemos observar a evolução dos seus procedimentos estéticos, mesmo em fases pouco lisonjeiras. Que será mais moderno, na era da permanente exposição e da voracidade das redes sociais, do que assistir às diversas fases do beauty enhancement?

 

Sophie Gilbert, na recensão crítica que fez na The Atlantic ao livro A Rebel Life, a última biografia da artista, escrita por Mary Gabriel, descreve na perfeição a atitude clássica perante a diva madura: “Gostamos que os nossos ícones femininos, à medida que envelhecem, se retirem silenciosamente na ponta dos pés para a semi-reclusão, afastados da nossa implacável curiosidade e do nosso olhar impiedoso.” Esperar que Madonna se comportasse desta forma seria contraintuitivo, se mais não fosse porque ela é, nas palavras de Gilbert, mais do que uma artista “uma obra de arte que vive, respira e está em constante metamorfose – uma Gesamtkunstwerk “. Esta ideia de obra de arte total, assente numa exposição ao olhar do espectador induz, neste caso, uma falsa sensação de conhecimento. É que, como escreve Gilbert, para a artista a “auto-exposição é mais acerca da ofuscação do que da revelação. Cada nova identidade que ela dissemina é apenas uma camada diferente; quanto mais se vê dela, mais a ‘verdade’ é obscurecida”.

 

A Madonna da Celebration Tour, que agora chega a Lisboa, é a artista que viu a sua obra de arte interrompida por cinco dias. Cinco dias da sua vida ou da sua morte, como ela própria diz. Numa era dominada pela indústria da juventude, a derradeira provocação pode ser prolongar a idade activa no show business. De alguém que já teve um dos seus concertos definido pelo Papa João Paulo II como “um dos espectáculos mais satânicos na história da humanidade”, poder-se-ia supor que seria a candidata ideal a um pacto faustiano. Será, porém, mais sensato imaginar Madonna próxima da ideia do corpo mutante dos filmes de David Cronenberg. Como se, no exercício do inalienável direito à autodeterminação da sua imagem, dissesse, de forma desassombrada e profana: “Este é o meu corpo, o corpo de Madonna, tomai e comei.”

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