UM BEIJO EXTEMPORÂNEO E SEM SENTIDO
Agosto 27, 2023
J.J. Faria Santos
Dezanove anos depois de Sepp Blatter ter sugerido que as mulheres deveriam jogar com calções mais curtos e justos, como no voleibol, em nome de uma “estética feminina”, e dez anos depois de o mesmo personagem se ter aventurado a avaliar a textura e a consistência do rabo de Hope Solo, guarda-redes da selecção americana, durante uma gala da FIFA, o “episódio” Rubiales-Hermoso parece demonstrar que prevalece na ideia de alguns dirigentes uma certa noção de futebol feminino algures entre a competição desportiva e o concurso de beleza. E tal como deveria exprimir o desejo de paz no mundo, a futebolista campeã deveria acolher com bonomia, êxtase mesmo, o beijo efusivo e o abraço apertado do presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, e encará-lo como um símbolo de validação e realização pessoal.
Luis Rubiales diz que o beijo com que presenteou Jenni Hermoso foi “espontâneo e consentido”. Na verdade, foi extemporâneo e sem sentido. Invasivo e desrespeitoso. Aonde nos levaria a tirania da espontaneidade, entendida como licença para dispor do corpo de outrem como receptor das nossas efusivas emoções? E “não foi um beijo, foi um beijinho”, acrescenta Rubiales. No fundo, alega que foi uma espécie de beijo técnico. Ao que chegámos: já não pode o homem tradicional exprimir afecto agarrando e beijando uma amiga subordinada ou, num momento de euforia e fervor patrótico, agarrar as partes íntimas na presença da rainha e da infanta? Salvem o macho ibérico, que está em vias de extinção, atacado pelas feministas woke furibundas e vítima da pusilanimidade do frouxo homem contemporâneo.
"Quero esclarecer que, como se viu nas imagens, em nenhum momento consenti no beijo que ele me deu e, claro, de forma alguma procurei levantar o presidente. Não tolero que a minha palavra seja posta em causa e muito menos que inventem palavras que eu não disse" declarou Jenni Hermoso. Como escreveu a jornalista Jill Filipovic num ensaio disponível no sítio da Internet da CNN, pondo em causa a validade da justificação do beijo como um acto espontâneo, “no calor do momento os homens não tendem espontaneamente a agarrar e a beijar outros homens. É como se existisse um direito a dispor dos corpos das mulheres, e a expectativa de que as mulheres tolerarão a invasão chocante do seu espaço pessoal, que não se aplica a eles.”
Foto: FIFA/edition.cnn.com