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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

TINA

Maio 28, 2023

J.J. Faria Santos

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No rescaldo de um desaire romântico ou de um embate com a modalidade universal do amor não correspondido, versos como “Who needs a heart /  When a heart can be broken” adquiriam um pendor revolucionário. What’s Love Got To Do With It emancipava-se do estatuto de prazer efémero de menos de quatro minutos para se alcandorar ao panteão do significado: passou a representar uma atitude, um desafio, um resgatar do controlo, o exorcizar do pathos. Para quê mortificar-nos com o sofrimento motivado por uma “emoção em segunda mão” quando nos podemos deixar conduzir pelas leis da atracção física?

 

Mas antes de What’s Love Got To Do With It houve Let’s Stay Together, a recriação do tema de Al Green, que tem uma das mais explosivas, intensas e arrebatadoras introduções da história da música ligeira. (Talvez uma das poucas rivais à altura seja Jocelyn Brown e o início poderoso sublinhado pelo piano de Someone Else’s Guy.)  Aqui celebra-se uma união abençoada pela incompreensão das rupturas fúteis (“why do people break up /And turn around and make up?”), porque o essencial é preservar a relação (“Let’s stay together / Loving you whether / Whether times are good or bad, happy or sad”). O amor ainda não se tinha depreciado, a usura ainda não se tinha instalado com aquele sentimento a ser relegado, na hierarquia das emoções, para o mercado dos usados.

 

E depois haveria Two People. “(Two people living on the edge of life / Are people running out of dreams and time.”) E o que podem fazer duas pessoas em perda? Aconchegarem-se no abrigo das suas insuficiências e das suas falhas, permanecerem juntas numa manobra de sobrevivência enquanto se mantiver o contrato de afecto que subscreveram e, quem sabe, revitalizá-lo.

 

Em 1976, a intérprete destes temas abandonou um casamento abusivo que durava há 16 anos, pejado de agressões físicas e verbais e por uma abjecta ausência de autonomia. Como relembrou Amanda Petrusich na New Yorker, quando falou à revista People sobre esta matéria, cinco anos depois, Tina Turner resumiu o relacionamento com o ex-marido à palavra “tortura”. E afiançou: “Não receei que ele me matasse quando o abandonei, porque eu já estava morta.”

 

Quando renasceu na década de oitenta do século passado tornou-se no ícone da resistência, da superação e da reconquista. Trepou nas tabelas de vendas e obteve o reconhecimento da crítica. Ofereceu em estádios lotados o bálsamo da sua voz enrouquecida a temas infectados pelo rock e pela soul, exibindo as suas belas pernas em coreografias carregadas de vitalidade e joie de vivre. Quando se retirou, em 2009, fixou residência num país neutro dizendo-se “cansada de cantar e de fazer toda a gente feliz”. Estava na altura do merecido descanso da guerreira.

 

Agora não haverá um novo renascimento, mas o obituário do New York Times lembrou uma frase de uma entrevista da artista ao Daily Mail em 2008: “A minha música não soa datada; permanece forte. Como eu.” A lenda persistirá.

 

Imagem: Peter Lindbergh (tinaturnerblog.com)

FREDERICO PINHEIRO - UM HERÓI PORTUGUÊS

Maio 20, 2023

J.J. Faria Santos

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“O depoimento de Frederico Pinheiro não poderia ser mais esclarecedor, nem a sua audição mais credível”, escreveu João Miguel Tavares no Público. “Uma aldrabice pegada do princípio ao fim”, “não apresentou provas de nada”, “não tem testemunhas de coisa alguma”, afirmou Miguel Sousa Tavares no podcast do Expresso. Posições extremadas acerca de uma matéria e de uma figura que tem sido incensada e glorificada. A esmagadora maioria dos jornalistas e comentadores elevou o assessor quase à categoria de whistleblower sem que se perceba que informação relevante preservou ou que mecanismo perverso denunciou. As célebres notas deste herói português estão na posse da comissão parlamentar de inquérito, enviadas pelo ministério. Algum membro da CPI já as analisou? E se são tão explosivas, porque é que não se questionou o ministro sobre o assunto? Ou o relevante é a alegada intenção de ocultar/omitir essas notas por parte do Ministério das Infra-Estruturas? E o que alegadamente se pretenderia ocultar seria aquilo que o assessor apelida de “registos informais, retirados no bloco de notas do computador, com gralhas” ou a versão revista (e esperemos que não alterada ou aumentada) que ele providenciaria depois para envio para a CPI?

 

A jornalista Mafalda Anjos viu-se impelida no ecrã da CNN Portugal (e também no Twitter) a afirmar que “declarações não são revelações” e que “os comentadores não são juízes”, alertando que estamos perante versões diametralmente opostas de determinados factos e lamentando o “facciosismo enorme na análise destas versões”. Um alerta relevante numa altura em que, citando Pacheco Pereira no Público, “as regras do jornalismo desapareceram do espaço público, substituídas por um tratamento comicieiro e politicamente motivado e orientado, que, por falta de alternativa, deixa todos entregues à intoxicação”. Como seria talvez de esperar, a própria CPI conteve exemplos de ausência de civilidade e equilíbrio, que o próprio Pacheco Pereira exemplifica com a “má educação” e as “declarações insultuosas” de “alguns deputados, em particular do PSD”, cujo “tom agressivo e despropositado” fez André Ventura parecer “um santo”.

 

A glorificação de Frederico Pinheiro pela generalidade dos média contém o risco de apelidar de corajoso um homem que terá agredido várias mulheres. A menos que consideremos que estas são apenas umas tontas assustadiças que face a um plácido assessor afectuosamente apegado ao computador de serviço correram a refugiar-se na casa de banho. E convenhamos que é insólita a pressa com que ele entendeu ir buscar o computador e levá-lo para casa. E inusitada a forma como não hesitou em recorrer à força física para concretizar o seu desejo.

 

O depoimento inicial do assessor na CPI, ladeado por um advogado de renome, é um texto estruturado que apesar de anunciar a defesa da “verdade dos factos” e não um “ajuste de contas” tem um forte conteúdo político. Foi lido com a entoação, a gestualidade e a intenção de um pivô de noticiário televisivo. Alude a “uma campanha montada pela poderosa máquina de comunicação do Governo que procurou criar uma narrativa falsa sobre os factos ocorridos” e diz-se “injuriado e difamado”. Em declarações posteriores não descartou processar o primeiro-ministro. A presença do advogado e a maneira como pré-preparou respostas a hipotéticas perguntas mostra a vontade de minimizar os riscos da espontaneidade e do improviso, riscos estes manifestamente exagerados dada a docilidade com que foi tratado na CPI, justamente encarado como um trunfo na estratégia de derrubar o ministro e até o Governo.

 

Frederico Pinheiro não é um cidadão “corajoso” anónimo e desprotegido perseguido pela máquina de um Estado totalitário sem recursos para se defender. Tem feito parte da máquina do Estado, tem no seu currículo vários anos de trabalho como jornalista e foi assessor de um grupo parlamentar. É autor de uma dissertação de mestrado com o título “Compreender a realidade: os fatores explicativos das notícias”, onde partindo da Teoria do Agendamento de McCombs e Shaw refere que o “agendamento criado pela difusão de notícias impõe aos indivíduos não apenas sobre o que pensar, mas também o que pensar”. Num capítulo sobre o “mimetismo mediático” escreveu que “os órgãos de comunicação social tendem a imitar comportamentos e a mimetizar a mesma agenda mediática”, acrescentando que a comunicação social de referência predomina na definição dos “temas em debate público”, amplificando “a voz de determinados actores sociais” e guiando “o caminho a ser seguido pelo mercado”.

 

Este é um herói português que conhece, domina e explora o agenda-setting, e cavalga por instinto de sobrevivência o ar do tempo. Que poderia ser o poster boy da Agenda do Trabalho Digno (porque concilia as responsabilidades familiares com os compromissos laborais e por isso é que ia trabalhar a desoras para o ministério) e que participa no desfile do 25 de Abril. Ele conhece os dois lados e sabe que “a democracia morre na escuridão”. Não há espaço para a fúria do herói nesta narrativa, muito menos para agressões ou bicicletas arremessadas contra a fachada de edifícios. Onde está a verdade? Sabemos há muito que cada um tem direito a lutar ”por aquilo que acredita ser a sua verdade”. E que os heróis, salvo raríssimas excepções, são personagens de ficção.

 

Imagem: José Sena Goulão/Lusa (24.sapo.pt)

O PIANISTA PÚBLICO

Maio 14, 2023

J.J. Faria Santos

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A culpa é da vontade. E do talento. E da sensibilidade. Hugo. 21 anos. Desempregado. Ex-copeiro de restaurante. Gostava de “acabar o 9º ano e seguir e estudar electrónica”. Toca piano em pianos públicos porque tem “mesmo vontade de tocar”. A compulsão da performance não vem de um desejo narcisista de celebridade ou de um apelo lúdico. É uma forma de expressão irreprimível de uma identidade. Se a poesia é para comer porque é que a música não pode ser um bem de primeira necessidade?

 

O Hugo precisa de novas oportunidades e Portugal não lhe deveria falhar. Na “geração mais qualificada de sempre”, fruto de uma paixão desalmada pela educação, há quem se entregue a uma paixão mesmo sem uma educação formal. Há quem na cauda da escala social se aproprie benignamente de espaços públicos para acariciar as teclas de um piano de cauda, surpreendendo os espectadores acidentais com a espontaneidade ou o improviso, criando uma inesperada banda sonora para o quotidiano.

 

Num espaço público saturado de profissionais da indignação, influencers traficantes de banalidades, aristocratas do pensamento e sumidades desdenhosas de um país demasiado pequeno para a sua sapiência ou para o seu dom, é um bálsamo que os holofotes do reconhecimento, nem que seja por breves momentos, incidam sobre um jovem negro anónimo sentado a um piano envergando uma T-shirt branca com o rosto de Bob Marley. O mesmo Bob Marley que cantou em Concrete Jungle: “Must be somewhere (sweet life) to be found (somewhere, somewhere for me) / Instead of a concrete jungle / Where the living is harder (in a concrete) /Concrete jungle (jungle)”.

 

Imagem: The Pianist de Aisha Haider (artmajeur.com)

ERA UMA VEZ UM "ALIADO"

Maio 07, 2023

J.J. Faria Santos

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Era uma vez um “aliado” que disse que “não faz sentido falar periodicamente de dissolução” do Parlamento e que, no entanto, em menos de quatro meses falou dela pelo menos 10 vezes.

 

Era uma vez um “aliado” que, depois de ter dito ao primeiro-ministro que “não será politicamente fácil que essa cara que venceu de forma incontestável e notável as eleições possa ser substituída por outra a meio do caminho”, tem insinuado com frequência que esse caminho pode ser interrompido.

 

Era uma vez um “aliado” que disse à ministra da Coesão Territorial Ana Abrunhosa: “Super infeliz para si será o dia em que eu descubra que a taxa de execução dos fundos europeus não é aquela que eu acho que deve ser. Nesse caso não lhe perdoo. Espero que esse dia não chegue, mas estarei atento para o caso de chegar.”

 

Era uma vez um “aliado” que na tomada de posse deste Governo assegurou que continuaria "vigiando distrações, adiamentos, autocontemplações e deslumbramentos” e que agora promete estar “mais atento e interveniente no dia-a-dia”. Esteve vigilante, mas não suficientemente atento?

 

Era uma vez um “aliado” que, citando Pacheco Pereira (Público -  27.01.2018), foi “comentador conhecido pelo seu cinismo, propensão para a intriga e mesmo ajuste de contas nas antipatias próprias” e se transformou num Presidente que “não se coíbe de usar as armas dos políticos populistas modernos, feitos pela televisão, para cultivar uma ‘proximidade’ cujo sucesso é sempre ser ‘contra’ alguma coisa”.

 

Era uma vez um “aliado” que, a pretexto de se pronunciar sobre determinada lei, anunciou que o Executivo tinha “falta de credibilidade” e inspirava pouca confiança.

 

Era uma vez um “aliado” cujas prioridades, em tempo de guerra na Europa e com uma inflação persistente a ameaçar o poder de compra das famílias,   incluem a análise e teorização sobre sondagens: se o PS cair para 26% ou 27%,  se o PSD subir para 35% ou 36%, então talvez se pudesse gerar uma alternativa com a IL e o CDS .

 

Era uma vez um “aliado” que pouco depois de ter jurado que “temas sensíveis” não são para “tratar na praça pública”, fazia chegar à comunicação social que não se contentaria com menos do que a demissão de um ministro.

 

Era uma vez um “aliado” que em vez de um tratamento em plano de igualdade pretendia subserviência, que em vez de cooperação solicitava vassalagem, que à lealdade e à frontalidade preferia a dissimulação, que à concertação entre poderes privilegiava a concentração de poderes sob a sua tutela.

 

Era uma vez um “aliado” que asseverou que não contassem com ele “para criar conflitos, nem deixar crescer tentativas para enfraquecer a função presidencial” imediatamente a seguir a tentar enfraquecer o mandato do primeiro-ministro, imiscuindo-se na prerrogativa deste de nomear e demitir os membros do seu Governo.

 

Era uma vez um “aliado” que diz ser “o último fusível de segurança política” do sistema constitucional, e que devido a uma sobrecarga de prepotência causada pela alimentação em excesso do ego se arrisca a provocar um incêndio político enquanto sorve um gelado.

 

Imagem: Rui Gaudencio/Público

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