É véspera de Natal. Já passaram quase três anos e meio desde que partiste. O meu irmão já não faz visitas semanais ao local onde repousas, dedicando-te confusos monólogos do luto, o que não significa um qualquer prelúdio de apagamento da memória, representa, isso sim, um apaziguamento. A dor lancinante, bruta, é agora uma agridoce melancolia. Compreenderás que corresponde à ordem natural das coisas, doutra forma ocorreria um perpétuo ritual doentio.
O teu filho foi um valente. Confesso-me abismada com a presença de espírito, a sensibilidade e a discrição com que lidou com a orfandade precoce. É espantoso como encaramos as novas gerações como algo desligadas, inconscientes, impreparadas para a realidade da vida quotidiana, perdidas no manejamento dos smartphones, formatadas para a realidade virtual do Instagram e, de repente, como se movidas pelo prazer perverso de nos surpreenderem, entregam-se a causas fundamentais que nós, adultos certificados, realistas em negação, preferimos ignorar. Sei que, onde quer que estejas, te orgulharás do Tiago e do seu envolvimento no movimento que exige uma acção mais consequente no combate às alterações climáticas. Assim como da sua participação num grupo de apoio aos sem-abrigo, que distribui refeições, roupa e medicamentos, para além de procurar encaminhá-los para soluções institucionais que os retirem da rua. É uma actividade gratificante, mesmo para aqueles de nós que olham para esta forma de voluntariado como um meio de sossegar as consciências. Sim, é tudo muito precário e provisório, e cada história de vida é um novelo difícil de desenredar e ainda mais de orientar para tricotar um futuro, mas uma refeição quente e um gesto caloroso alimentam a esperança.
Rememorando agora os primórdios da nossa relação, evoco sobretudo aquele momento em que ultrapassaste o estatuto de namorada simpática do meu irmão e te tornaste numa pessoa fundamental para a minha sobrevivência neste, por vezes, torrencial tumulto dos dias que passam. Exagero? Bom, como se diz algures no Livro do Desassossego, “vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem”. Quando a viagem se tornou tormentosa, tu estavas lá para me ajudar na travessia. Claro que o meu irmão estava presente e os meus pais atentos, mas há tumultos interiores que se acumulam e que por pudor se ocultam, como se uma qualquer revelação nos enfraquecesse irremediavelmente. Quando somos jovens, queremos exibir-nos como inexpugnáveis, resistentes ao assalto da dúvida e imunes à crueldade, quantas vezes capa da insegurança, dos nossos pares. Num misto de perspicácia e sensibilidade, abriste uma porta e soubeste esperar que eu me dispusesse a entrar. Ajudou que tivesses uma tia psicóloga.
Apercebo-me agora da importância de termos ferramentas que nos permitam nomear. Quer dizer, eu, na altura, não sabia que estava a sofrer de assédio no trabalho. Era o meu primeiro emprego depois do curso. Havia comportamentos que me pareciam desnecessários, mas seriam, digamos, naturais? A mão do meu chefe nas minhas costas quando nos encaminhávamos para o elevador, o seu rosto muito próximo do meu quando se aproximava por detrás da minha cadeira e se inclinava sobre a minha secretária como se estivesse a supervisionar um exercício de escrita, os seus dedos intrusivos a procurarem os meus quando, invertendo a prática habitual, me estendia um café, “quente e cremoso”, como gostava de sublinhar. Seguiram-se os elogios indirectos à minha forma física (“que ginásio é que costuma frequentar?) e as loas ao meu guarda-roupa (“profissional e ao mesmo tempo feminino”), que culminaram num convite para jantar num sábado à noite, que eu recusei com delicadeza e “feminilidade”. Foi quando começou um ciclo infernal. Ora me deixava dias a fio quase sem tarefas a desempenhar, ora me atribuía um projecto altamente complexo com um calendário de conclusão impossível de cumprir. Desvalorizava sistematicamente as minhas opiniões e sugestões, propositadamente na presença dos meus colegas de trabalho, tornando pública a sua insatisfação e sugerindo que o meu contrato poderia não ser renovado. Foi neste ponto, e numa altura em que, com a tua ajuda e a da tua tia, a minha fragilidade evoluíra para a resistência e para a vontade de retaliação, que percebi que eu é que iria rescindir o contrato.
Este é o primeiro Natal depois do regresso da guerra ao coração da Europa. Uma guerra em tempos de pós-verdade, onde uma invasão é descrita pelos violadores de soberania como uma operação militar especial. Este é o Natal do regresso da velha senhora, a inflação. Este é o Natal em que o brilho das luzes e o apelo do consumismo estão ameaçados pelo imperativo da poupança. Eis uma boa altura para regressarmos ao básico, ao essencial. Trocar afectos, sempre bem-vindos, em vez de trocarmos presentes, que por sua vez, enjeitados pelo gosto, serão permutados nos dias a seguir ao Natal, numa romaria às lojas como se fossem casas de câmbio.
Ontem à noite, antes de adormecer, remexendo em gavetas esquecidas em móveis imóveis no meu quarto, deparei com um maço de envelopes com postais de boas festas, relíquias de um passado pitoresco. Num deles descobri uma fotografia de nós os três, todos com aqueles apetrechos para a cabeça que imitam as hastes das renas. Parecemos felizes. (Fomos, não fomos?) Se é possível capturar um estado de beatitude com um clique instantâneo, então esta fotografia é o cânone. Não há um sorriso estrepitoso para a objectiva, há, objectivamente, uma máquina submetida à magia da ausência de encenação.
Não te espantes com as minhas dúvidas. Às vezes, muitas vezes, penso que passei anos da minha vida a deambular como uma sonâmbula, de tal maneira que, com frequência, quando penso em determinado acontecimento ou facto, me interrogo se sucedeu mesmo ou é uma memória falsa. Isto, claro, foi antes, antes de me lançar a viver com uma avidez frenética. Como se fosse possível recuperar o tempo perdido. Não é, sei-o bem. A expressão “nunca é tarde demais” devia ser criminalizada por falsidade dolosa.
Por esta altura (embora eu não saiba como funciona o sistema de comunicações no universo que habitas), com toda a probabilidade, já deves estar ao corrente da existência da Maria Ana. Embora tenha sido bem acolhida pela família, com a notória excepção do Fred, que com a sua personalidade bem vincada fez questão de moderar a simpatia e até se entregou a alguns exageros hostis, de início pareceu afectada, salvaguardadas as devidas distâncias, pela “síndrome de Rebecca”. Como no livro de Daphne du Maurier, a Maria Ana deve-se ter sentido transportada para um ambiente em que a persistência da memória da tua existência permeava todos os momentos. Imagino as interrogações que lhe terão ocorrido. Estarão a comparar cada gesto que eu faça, cada modulação do rosto, cada hesitação na fala? Estarei a ser demasiado contida, respeitosa? Transmitirei uma sensação de antipatia ou sensaboria? Deverei arriscar uma atitude mais expansiva sem parecer intrusiva? É este, deveras, o meu lugar, mesmo com o Pedro ao meu lado?
Ela deve ser uns bons cinco ou seis anos mais nova do que tu e é divorciada. Não tem filhos. Tem um ar discreto, sem ser tímida. Veste de forma casual, pelo menos das vezes em que convivemos, mas com bom gosto. Mantém um tom de voz constante, mesmo quando se empolga ou descreve algo emocionante. É atraente sem ser particularmente bonita. E parece fazer feliz o Pedro, o que é o mais importante, não concordas?
O momento em que decidiram ir viver juntos foi precedido de uma conversa com o Tiago. Não se tratava, como decerto perceberás, de pedir a bênção ou, pior ainda, a autorização. Seria absurdo e o Tiago não teria a veleidade (e muito menos a desconsideração) de se colocar na posição de juiz de uma escolha de vida, mesmo sendo parte interessada. Tudo se passou com naturalidade. Como se costuma dizer em certos contextos, tratou-se de uma “evolução na continuidade”. Cada um assumiu os seus papéis, sem usurpação de funções nem comportamentos passivo-agressivos. Cada um foi-se adaptando às circunstâncias. Não é assim que se supõe dever ser? Estou certa de que terão existido momentos de estranheza, de desadequação e de frustração das expectativas, que terão sido resolvidos no íntimo de cada um. Só na sociedade de terapia pública em que vivemos, de sentimentos escancarados nas redes sociais, é que se imagina que tudo se explica e se resolve com a vocalização intensa e interminável das nossas misérias e das nossas contrariedades.
Tudo se foi compondo, pois, até que chegámos aqui. A mais um Dezembro. Não nevou ainda, mas em contrapartida os céus abriram-se com estrondo e uma chuva torrencial varreu terra e asfalto. Uma certa surpresa em tempos de seca extrema. Mas não foi, este ano, a única manifestação do repentino. A inesperada notícia a que agora aludo teve tal impacto que acabou por condicionar a noite da consoada. A mesma noite que agora avalio da janela da sala, pontuada por luzes e fulgor, abstraindo-me do restolho das conversas, enquanto aguardo que o telemóvel toque.
O Pedro está no hospital a acompanhar a Maria Ana. É dele o telefonema que aguardo. O anúncio do que se passava deixou-nos a todos um pouco aturdidos, inicialmente. Não que fosse particularmente inaudito, muito menos impensável ou insensato. Acho que ele também se debateu com sentimentos ambivalentes. Terá pensado que correria o risco de desempenhar um papel fora de tempo ou que poderia, mesmo inconscientemente, interpretar esta circunstância como um mecanismo de compensação emocional. Um ganho para contrapor a uma perda. Na verdade, se assim fosse, ficaria a ganhar por dois a um.
A gravidez de Maria Ana foi o acontecimento do ano. Brinquei com a perspectiva de o Pedro se voltar a debater com noites insones e fraldas descartáveis, mas também com a oportunidade de pôr em prática os conhecimentos entretanto adquiridos para se tornar um pai 2.0. Claro que, sem me atrever a perguntar se a gravidez fora planeada ou fortuita, meditei por breves instantes (o pudor impediu a extensão da reflexão) se seria avisado ou indispensável para a consolidação da relação. Talvez ela sentisse o apelo da maternidade e ele tivesse aquiescido, por empatia e também por vontade própria de alargar a descendência. Os motivos não importam, sendo certo que o bebé foi desejado, se não antes, a partir do momento em que impôs o esboço da sua presença no útero da mãe. Até que, com a mesma veemência, reclamou a independência do líquido amniótico. A persistência das contracções e o rebentar das águas (eis um dilúvio benfajezo que celebra a vida) tornaram imperiosa a expedição ao hospital.
Lambuzo-me com uma fatia de tronco do Natal e recuso um sonho de abóbora. Comer um sonho soa-me a algo vagamente metafísico (come-se imaginação, devaneio, fantasia ou deglute-se o produto do nosso inconsciente?), embora seja mais aconselhável do que comer sono. Estou um pouco cansada. E ansiosa. Percebo-o quando me acorrem estas divagações idiotas. Há qualquer coisa nos ambientes familiares que me reconforta e ao mesmo tempo me inquieta. Tu sabes, não sabes? Aquela sensação, absolutamente não fundamentada, de não pertencer a lado nenhum… Se ao menos o Pedro telefonasse com a jubilosa notícia do nascimento.
Há uma escolha que o Pedro e Maria Ana fizeram: não saber o sexo da criança. Há pais que preferem saber para planearem as roupas a adquirir ou a decoração do quarto do recém-nascido, mas eles jogaram na surpresa. O importante era que fosse do género saudável. A nossa mãe lamenta não poder tricotar nada sem saber se iria ter um neto ou uma neta, presa ainda ao estereótipo do azul e do rosa. Logo ela, tão “moderna” em quase tudo o resto.
Bebo um licor azulado na exacta altura em que alguém na mesa grita que já passam 25 minutos da meia-noite. Segue-se a romaria para a árvore e o assalto aos presentes. Notificações de mensagens parecem atropelar-se no meu telemóvel. Há camisolas, livros, perfumes e até um tablet exibidos com satisfação. Há o estribilho de uma canção de Natal que escapa da vizinhança. Há um eco de intemporalidade que envolve a celebração. Até que o nome Pedro se ilumina no visor do smartphone.
Sim, nasceu. A menina. E a voz dele a escorrer de emoção e espanto. E orgulho, como se dissesse: contribuí para isto, que feito maior poderei protagonizar? Chama-se Cristina. (O nome fora a única coisa que escapara ao improviso e à ignorância deliberada.) Que nome seria mais apropriado para quem nasce no dia de Natal? Cristina, que significa cristã ou ungida por Deus. Cristina, escolhida por Deus e destinada a ser amada pelos homens.