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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

PUTIN ON THE RITZ

Fevereiro 26, 2022

J.J. Faria Santos

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Puttin’ on the Ritz é uma composição de Irving Berlin, celebrizada sobretudo por Fred Astaire, cujo título alude a uma expressão de gíria aplicável a quem se vestia de acordo com a última moda. Berlin descreve no tema um ambiente de elegância, luxo e riqueza, onde os ricos se passeiam por Park Avenue, de nariz no ar, exalando opulência e arrogância. E poder.

 

Vladimir Putin, herdeiro de um império em ruínas, quer preservar o seu espaço de influência, blindar o seu modelo de governação, reocupar o lugar que tinha no concerto das nações antes da ilusão do “fim da História” e enfraquecer o rival americano com a ajuda de Xi Jinping. É por isso que a invasão da Ucrânia é um verdadeiro Putin on the Ritz, ou seja, um desfilar de tropas e intenções, onde se misturam a audácia e a prepotência em campo aberto com a ambiguidade e as manobras ocultas ou subterrâneas.

 

Os ventos de guerra sopraram com intensidade e Putin até ousou, cinicamente, mascarar uma manobra de agressão de operação humanitária, afirmando querer “desnazificar” o país vizinho e fazer cessar o “genocídio”. Empolgado, ungido da invulnerabilidade das grandes proclamações, carregou no tom de ameaça: “Quem quer que se atravesse no nosso caminho, ou mesmo quem nos ameace a nós e ao nosso povo, deve saber que a resposta russa vai ser imediata, e levará a consequências que nunca enfrentaram na vossa história.”

 

Na presente conjuntura, não há considerações históricas ou interesses económicos que possam matizar a reacção a este desprezo pela soberania de uma nação e pela ordem internacional. E que nível de confiança se pode estabelecer com um “nostálgico imperial”, expressão de Anne Applebaum, para quem Putin “e as pessoas que o rodeiam operam um sistema de equilíbrio e controlo, sem normas éticas, sem qualquer tipo de transparência”? Um ditador à frente de um estado pária com capacidade nuclear no coração da Europa tem de ser combatido com inteligência e firmeza, e qualquer cedência à tentação do apaziguamento não só seria inútil (“Putin respeita a força e despreza a fraqueza”, escreveu Nuno Severiano Teixeira) como representaria um ultraje à coragem da resistência ucraniana, simbolizada pela afirmação do Presidente Zelensky: “Quando nos atacarem, verão as nossas caras, e não as nossas costas.”

 

Imagem: redbubble.com

O SENTIDO DAS PROPORÇÕES

Fevereiro 20, 2022

J.J. Faria Santos

 

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Parece que a democracia sofreu uma agressão irremediável. Houve quem lhe chamasse um “episódio grotesco”, e até houve quem se interrogasse se não é o “Presidente da República o responsável pelo regular funcionamento das instituições”. Com que finalidade, exactamente, não ficou claro. Mas como toda a gente sabe, Marcelo acha-se uma espécie de Tribunal Constitucional Unipessoal de facto, pelo menos até que o de jure o contrarie, levando-o, como institucionalista que é suposto ser, a registar a opinião do colectivo com um tom ligeiramente enfadado. Daí a sua tirada: “Está decidido. É a democracia a funcionar. Isto é uma lição para os partidos.” Tudo isto, depois de ter partido do “princípio de que o TC não decidiria anular as eleições.” Ele bem proclama que “é o Direito que serve a política”, mas o Direito insiste em não estar pelos ajustes.

 

É certo que o episódio da anulação de cerca de 157 000 votos dos emigrantes no círculo da Europa não é muito edificante. E o recurso a um acordo de cavalheiros (cujo rompimento pressupõe a inexistência de acordo ou de cavalheiros…) para remediar as insuficiências da lei eleitoral tinha fragilidades óbvias.  Nada que, do meu ponto de vista, justifique a sanha persecutória do (ainda) líder da oposição, empenhado numa “queixa-crime contra quem boicotou as eleições para os deputados da emigração, misturando propositadamente votos válidos com inválidos”. Muito menos, que se rasguem as vestes e que se decrete que a democracia está de luto.

 

É sempre avisado ter o sentido das proporções. Afinal, num país encarado como um farol da democracia, houve um Presidente que quis saber se poderia confiscar e controlar máquinas de voto, que insistiu em aludir a fraudes sem fundamento no sufrágio e que incitou e tolerou a invasão do Capitólio, o coração do poder legislativo, numa manobra intimidatória que ficará registada nos anais da infâmia. Comparado com isto, o incidente português, que culminará na repetição das eleições pelo círculo da Europa, não passa de um lamentável erro burocrático.

 

O TRADUTOR DA ALMA

Fevereiro 13, 2022

J.J. Faria Santos

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É dito com frequência que em determinadas circunstâncias as palavras não fazem jus ao pensamento e, sobretudo, ao sentimento. Como se fôssemos abalroados pelo indizível, vítimas de um curto-circuito no hemisfério cerebral esquerdo, viajantes perdidos na tradução. É por isso que os dotados da capacidade de alinhar as palavras justas em frases lapidares são como tradutores da alma, descodificadores do nosso íntimo, verbalizadores mesmo do que nos custa reconhecer. José Tolentino Mendonça é uma dessas pessoas. Se duvidam, reparem nesta descrição das consequências do luto: “Choramos porque o luto nos destaca drasticamente de tudo, nos torna irremediáveis apátridas, cuspidos para fora de órbitra, feridos por uma dor irreparável e sem a poder gritar, numa abrasiva solidão que, uma vez deflagrada, não nos larga mais.” (Expresso, edição de 4/02/2022)

 

Medito nesta frase e ocorre-me a tragédia de Rayan e dos seus pais mergulhados num vórtice de dor e culpa. E experimento um certo asco por ver uma tragédia promovida a top story impulsionadora do sucesso de audiências de um canal por cabo. O mesmo desconforto a roçar o vómito com que vejo a entrevista ao avô do suspeito do ataque à Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Se as pessoas não se protegem, por ingenuidade ou atordoamento, não deveria haver pudor por parte de quem noticia? Duas tragédias diferentes com pontos de contacto. Uma criança cativa num poço numa aldeia no norte de Marrocos e um jovem encarcerado num abismo de isolamento e incomunicabilidade. A impotência dos esforços de salvação versus a perdição na vertigem da agressão. Como explica Tolentino de Mendonça noutro artigo no Expresso (edição de 11/02/2022), na era da comunicação global “uma coisa é a conexão, outra bem diferente, bem mais rara, é a comunhão. Continua a ser uma ilusão pensar que a instantânea e ubíqua possibilidade de nos conectarmos é suficiente para satisfazer a necessidade profunda que todo o humano traz de se sentir acompanhado.” Que a reacção a um post ou a um tweet seja um like, por mais compensador que seja, não passará nunca de um placebo para a nossa inquietação existencial.

 

Imagem: 24.sapo.pt

LE PORTUGAL EN ROSE

Fevereiro 06, 2022

J.J. Faria Santos

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Como Piaf, António Costa não se arrepende de nada e não se importa com o passado, porque a vida começa agora com os portugueses que lhe deram um Portugal en rose. Onde muitos adivinhavam cansaço do eleitorado e entusiasmo com a oferta da oposição, o sufrágio revelou a pujança do nome da rosa e a importância repetidamente afirmada em inquéritos de opinião de um líder que transmite confiança, segurança e competência.

 

Duas evidências que se viriam a confirmar: os portugueses apreciaram a geringonça e tenderiam a castigar eleitoralmente os parceiros que chumbaram o orçamento. Algum descontentamento que Catarina Martins encontrou na campanha ia neste sentido. Os eleitorados do BE e do PCP valorizariam os contributos dos seus partidos para uma política de esquerda, mas veriam com desagrado algum fundamentalismo que tendia para a intransigência e para a rejeição do gradualismo na aplicação das medidas. A perspectiva de uma geringonça de direita agudizou o recurso ao voto útil.

 

O único mérito da campanha de Rui Rio (e não foi pouco) radicou na criação da ilusão da vitória e em ter conseguido reunir as tropas do partido, incluindo um Luís Filipe Menezes que um mês antes, em artigo no semanário Nascer do Sol, aludia à “bem oculta e cinzenta mediocridade enquanto homem de formação cultural mediana”, à “auto-suficiência sem sustentação” e à “tendência para os dictates e decisões prepotentes” do líder do PSD. Tivemos direito a um Zé Albino special guest star na campanha e a uma participação mediocremente ensaiada num programa televisivo, que não fizerem esquecer o erro capital de insinuar uma geringonça de direita com o Chega.

 

O sucesso da Iniciativa Liberal e do seu bordão de teatro de revista (“o liberalismo funciona e faz falta”), acompanhado de um estilo jovial, parece prometer um papel decisivo na reestruturação da direita, ainda para mais com o definhamento do CDS. Veremos se não acabará por tropeçar no excessivo proselitismo e na tenaz colagem a soluções que sob a aparência da liberdade condenam ao cárcere do desamparo e aos alçapões da meritocracia, e que apresentadas com o verniz da modernidade não passam de velhas soluções recondicionadas.

 

Costuma dizer-se que à dúzia é mais barato, mas o imperioso é que nenhum dos onze acólitos que se vão juntar a Ventura represente um preço demasiado alto para a democracia. Como representantes eleitos do povo português terão o seu espaço de intervenção e a liberdade de propor o que muito bem entenderem, mas não devem esperar qualquer tipo de permissividade ou complacência para com ideias que agridam o core business da própria democracia.

 

Já conhecemos as explicações dos especialistas. As sondagens são um “retrato do momento”, não são uma previsão. Há um grupo de eleitores que só decide na última semana ou no próprio dia das eleições. E há a questão técnica da distribuição dos indecisos. E, todavia, elas continuam a ser entendidas e comentadas (profusamente comentadas…) como se fossem estimativas do resultado. E, mais uma vez, falharam miseravelmente. As sondagens e os comentários.

 

A avalanche de comentadores que dissertaram nos diversos meios de comunicação social, mas sobretudo nas televisões, asseguraram a pluralidade de opinião, mas maioritariamente veicularam teses desfavoráveis ou abertamente hostis ao partido e ao líder que viriam a vencer. A possibilidade de vitória do PSD criou um frenesim mediático em que as inclinações pessoais contaminaram a análise e nublaram o brilhantismo analítico. Mas ainda antes, a 23 de Dezembro de 2021, já Clara Ferreira Alves escrevia que o PSD tinha ganho “aquilo que se chama momentum”, concluindo que “no dia 31 de Janeiro, Costa pode ter perdido tudo depois de perder a cabeça”. Faça-se justiça a João Miguel Tavares, que em meados de Janeiro titulava o seu artigo no Público com um definitivo “Porque é que Rui Rio vai perder as eleições”. A explicação era simples: “os portugueses ainda não estão suficientemente fartos de António Costa”. Pecou largamente por defeito. Uma indiferença a roçar o fastio não conduz a uma maioria absoluta.

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