DO FUNDO DO CORAÇÃO
Novembro 28, 2021
J.J. Faria Santos
Uma alusão da ministra da Saúde à necessidade de ponderar o factor resiliência no processo de selecção dos profissionais da área, nomeadamente no contexto do serviço de urgência, por se tratar de uma actividade de grande desgaste e sujeita a grande pressão, desencadeou a tempestade da semana. Mesmo tendo frisado a necessidade do “investimento em resiliência”, as afirmações de Marta Temido foram encaradas como um insulto ao esforço de médicos e enfermeiros, assoberbados com horas extraordinárias obrigatórias. O Sindicato Independente dos Médicos falou de “uma imperdoável ofensa que os médicos portugueses (…) não mais perdoarão e esquecerão”. Já o sempre excitável comentador residente das televisões e bastonário da Ordem dos Médicos nas horas vagas tratou, com a subtileza do costume, de proclamar que “se calhar arranjava-se outro ministro”.
O primeiro-ministro veio a terreiro frisar que o SNS e todos os seus profissionais deram mostras de uma “total dedicação, resiliência e empenho”, e o Presidente da República esclareceu que “na cabeça de todos os portugueses, ministros, secretários de estado, deputados, Presidente da República está que os profissionais de saúde são resistentes”. Em breve, sem renegar o que a cabeça ditara, Marta Temido pediu desculpa pelo “mal-entendido” do “fundo do coração”. Eis explicitada a “dissonância orgânica”, o estado de guerra semântico entre uma superfície racional (a “cabeça”) e o âmago da inteligência emocional (simbolizado pelo músculo cardíaco).
Em Outubro de 2020, o jornal Público noticiava que as “faltas por doença nos hospitais públicos aumentaram 64% nos primeiros seis meses da pandemia”, citando o “estado de exaustão dos profissionais”. Em Novembro deste ano, o mesmo jornal anunciava que em Setembro de 2021 o número de dias de ausência dos profissionais do SNS foi 22% superior ao mês homólogo de 2019. Analisado o período de Janeiro a Agosto de 2021, concluiu-se que as faltas por doença aumentaram 33% por comparação com igual período de 2019. Se visto isoladamente, no grupo profissional dos enfermeiros a subida ao longo do ano de 2021 foi 70% superior à verificada no ano anterior.
Sem pôr em causa o brio profissional e o trabalho empenhado e competente dos médicos e dos enfermeiros, talvez fosse aconselhável que os responsáveis do sector moderassem as suas manifestações de susceptibilidade e oferecessem contributos para o tal investimento na resiliência e na resistência dos profissionais da linha da frente. Sendo certo que é à ministra e ao Governo que compete criar as condições para que os médicos possam cumprir o estipulado no artigo 26º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos: “ O Médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se por esse facto à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a Saúde, suavizar os sofrimentos e prolongar a vida, no pleno respeito pela dignidade do Ser humano.”
Imagem: 24.sapo.pt