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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

O CENÁRIO TOTOBOLA: 1 X 2

Outubro 31, 2021

J.J. Faria Santos

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Politólogos e economistas partilham o facto de analisarem com talento e brio profissional o passado com a inadequação para prever o futuro. Na ausência de uma bola de cristal, melhorada com algoritmos e teorias de base empírica, restava-nos o deus ex machina Marcelo, não só para antecipar desenvolvimentos que as próximas semanas e meses trarão, mas sobretudo para condicionar o presente em nome da sua visão do interesse nacional, visão essa, preferivelmente, alheia aos jogos partidários. Ora, sucede que o PR fracassou com estrondo no seu território de expertise, afundando-se em manobras condenadas ao insucesso (com o temperamental poder madeirense) e dando uma machadada na sua neutralidade perante os interesse político-partidários e até intrapartidários (o timing da audiência a Rangel é tão inepto que só pode ter sido propositado). E a célebre proclamação “Eu sou como sou”, com ressonâncias de inimputabilidade, é a cereja no topo do bolo de uma semana que acelerou o tempo e marcou o início, agora sim, de um novo ciclo.

 

Para sermos justos, temos de convir que não foi o PR que espoletou a crise política. Embora fosse de esperar que tão arguto analista político percebesse que também o BE, mas sobretudo o PCP, “são o que são”, e que a sua proclamação definitiva de que o chumbo do Orçamento do Estado redundaria em eleições antecipadas continha em si uma forte probabilidade de ricochete. Em perda eleitoral, convencidos de que a geringonça não lhes trouxe grandes dividendos, Bloco de Esquerda e PCP regressaram ao conforto do estatuto de partidos de protesto. À direita, nem sequer o vago perfume do poder serve para unir um PSD em convulsão interna (com os passistas a quererem cavalgar o efeito Moedas e Rangel a fazer campanha como se já fosse líder do partido) e um CDS em guerra civil, com o Chicão a diminuir-se com expedientes que pretendem iludir uma cisão grave, enquanto que, acossado à direita, planeia abrigar-se na enseada do PSD dos tiros das fragatas da Iniciativa Liberal e do Chega, dupla candidata a crescimento em votos e deputados.

 

Politólogos e analistas políticos entregam-se, agora, ao “cenário totobola”. 1 – o PS, apesar do desgaste, capitaliza o voto útil e  parte do voto flutuante ao centro e vence com margem significativa. X – fica tudo sensivelmente na mesma, a ingovernabilidade adensa-se e Marcelo tem de gerir o impasse por ele directamente provocado. 2 – o eleitorado, confrontado com os desentendimentos à esquerda e/ou com os méritos da alternância, concentra votos à direita. Questão fulcral: os cenários 1 e 2 proporcionam uma solução estável de governo? O PAN pode ser decisivo à esquerda e o Chega tornar-se indispensável à direita?

 

Como sempre, em democracia o povo é quem mais ordena. Marcelo diz-se pronto para crises sucessivas e vai insinuando a sua simpatia por uma solução que não ousa dizer o seu nome (diz que é uma espécie de bloco central, informal e implícito). Teresa de Sousa escreve hoje no Público que “o primeiro-ministro joga tudo nestas eleições”. E interroga-se: “Continuará a ocupar o centro do palco? Marcelo gostaria de lhe ficar com o lugar.” Depois de uma solução à esquerda, que apesar da retórica da direita nunca foi extremista nem extremada, caminhamos para um centro radical?

 

IMAGEM: Nuno Fox (expresso.pt)

MOEDAS - EAU DE PARFUM

Outubro 24, 2021

J.J. Faria Santos

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Inebriados pelo novo flautista de Lisboa, os senadores da direita, liderando os correligionários, acorreram pressurosos à tomada de posse do alcaide. Não se poderá dizer que “foi bonita a festa, pá!” (expressão plebeia e esquerdista), ou que foi “chique a valer” (queirosianamente démodé). Terá sido, sei lá, amorosa, fantástica.

 

Não faltaram os comentadores do regime, ex-líderes dos respectivos partidos, que peroram aos domingos em canal aberto, assessorados por jornalistas que fazem de ponto ou de mestres de cerimónia. (O contraditório em espaços de opinião assinados é só para os políticos irascíveis.) Não faltou o ex-Presidente, especialista em artigos politicamente orientados disfarçados de ensaios de economia política. Não faltou o ex-primeiro-ministro, espoliado do costismo, D. Sebastião emérito, avaro nas aparições mas cirúrgico nas intenções. Não faltaram os contendores da guerra do trono: o barroco e incisivo Rangel e o abrasivo e acossado Rio. E figuras avulsas, de mérito variado, que abandonaram por algumas horas as suas empresas, fundações ou instituições financeiras para celebrar o que julgam ser o momento fundador do renascimento da direita. Todos eles se encharcaram de Moedas, o novo perfume do poder, com notas vibrantes e um toque cosmopolita, ainda para mais agora que a esquerda se compraz na divisão e no cálculo.

 

Houve quem notasse um certo odor a bafio. Nada que um vigoroso arejamento e um generoso aspergir de um fougère clássico não dissipe, julgam eles. Como se o passado fosse um país estrangeiro e a memória uma excentricidade dos ressentidos. Melhor será que celebremos todos a soberania do voto popular, as virtudes do Estado de direito e a importância da alternância democrática. Para depois podermos livremente dizer, como José Régio: “Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou, /- Sei que não vou por aí!”

 

IMAGEM: António Cotrim/Lusa (tsf.pt)

A VOZ HUMANA

Outubro 17, 2021

J.J. Faria Santos

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Há aquele momento, precedido por um silêncio à espera do deslumbramento, do desencanto ou da perplexidade, em que soa um acorde e uma voz se projecta ou sussurra, e a roda da fortuna gira implacável. Rodará a cadeira? De repente, damos por nós a tentar influenciar o júri telepaticamente, com a força dos nossos gostos, subitamente enlevados por uma versão folk do Fly Me to the Moon, aturdidos por uma recriação soberba do Georgia on My Mind ou emocionados por uma voz masculina a elevar aos píncaros o All I Ask of You da Adele.

 

Poderia chamar-lhe um guilty pleasure. Só que assistir ao The Voice não tem nada de culposo e é seguramente um prazer. E eu não tenho complexos por oscilar entre a “alta” e a “baixa” cultura. Haverá alguma desqualificação intelectual no facto de se poder apreciar Maria Callas, Ella Fitzgerald, Nat King Cole ou Amália e reservar algumas horas da noite de domingo para testemunhar um grupo de pessoas, de todas as idades, à procura de um sonho à medida do seu talento?

 

Imaginem uma espécie de A Star is Born em modo compêndio, em pequenos segmentos de vocação, ambição e drama, onde se misturam grandes esperanças com contratempos e melodramas familiares, tudo orquestrado por uma produção atenta aos detalhes e arbitrado por um grupo de jurados que oscila entre a divertida provocação mútua e a angústia no momento da decisão. Podem concorrentes e jurados falhar, aqui e ali? Podem, mas o espectáculo continua. E até parece que o talento é inesgotável. E começa tudo com uma voz, a voz humana.

 

Imagem: Facebook The Voice Portugal

A POESIA BRUTA DA ECONOMIA DOMÉSTICA

Outubro 10, 2021

J.J. Faria Santos

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Cortesia de uma gravidez inesperada, de um namorado violento, de um pai abusivo e de um conjunto de empregos mal pagos, Stephanie Land viu-se atirada para a terra da pobreza, uma povoação mal-afamada, vista por parte dos afluentes como território dos incapazes, dos fracos, dos que sucumbem ao vício ou ao comodismo. Stephanie Land não se encaixa neste perfil estereotipado e injusto e a sua história, contada pela própria no livro Maid: Hard Work, Low Pay, and a Mother´s Will to Survive (Empregada Doméstica: Trabalho Árduo, Salário Baixo, e a Vontade de Sobreviver de uma Mãe), agora transformado numa série da Netflix, é um testemunho pungente de uma luta titânica pela sobrevivência e pela manutenção da dignidade.

 

Num ensaio para a Time, Land revela que quando assinou o contrato com a editora para a publicação do livro, era ainda a mãe solteira de duas crianças de 2 e 9 anos pressionada por um ordenado em atraso e forçada a reduzir na alimentação e a ingerir piza paga com um cheque careca. Nada de original para quem utilizou frequentemente senhas de alimentação (food stamps), cortava refeições e reservava a fruta fresca para as crianças. Mesmo o adiantamento que recebeu da editora para escrever o livro (“uma quantidade de dinheiro que não parecia real”) não lhe permitiu esquecer os 20 000  dólares para pagar referentes ao cartão de crédito, uma viatura constantemente avariada e os 50 000 dólares que devia de empréstimos que contraíra para estudar. Já para não falar do desequilíbrio emocional e mental.

 

Emily Cooke, na crítica que publicou no New York Times acerca deste livro, escreveu que, apesar de ele não ser particularmente virtuoso, devemos escutar uma autora que “ultrapassou as agruras dos anos de empregada doméstica, de corpo exausto e mente assoberbada por uma aritmética sombria, para nos doar o seu testemunho”. Cooke chama ao equilíbrio instável das despesas (renda, alimentação, combustível, seguros, etc.) e das receitas (ordenado ligeiramente acima do salário mínimo e o “escasso apoio governamental concedido em prestações com espectacular relutância”) “a poesia bruta da economia doméstica”. A propósito da “avareza” governamental, sempre me provocou asco a veemência com que alguns  esgrimem (com pouco fundamento, aliás) o argumento da fraude nos subsídios que pretendem mitigar a pobreza, por comparação com a suavidade com que lamentam as “irregularidades” na obtenção e utilização dos subsídios disponibilizados às empresas.

 

Numa estratégia de luta contra a pobreza, antes de se partir para uma abordagem multidimensional (que vai da assistência social à saúde, da habitação à educação, visando a autonomização dos sujeitos e a consistência das soluções personalizadas), é preciso não esquecer o patamar inicial de emergência, que exige acção imediata. Como escreveu Stephanie Land no seu ensaio na Time: “Quando as pessoas me perguntam como podem ajudar, eu digo-lhes para perguntarem às pessoas do que é que sentem necessidade. Aposto que as respostas serão coisas como tampões ou fraldas e dez dólares para combustível, porque a vida é tão tacanha e limitada quando se tem fome que não se exige habitação a custos controlados e um salário adequado. Isto é só para aqueles de nós que têm meios para lutar.”

 

IMAGEM: edition.cnn.com

O DESGASTE HABITA EM SÃO BENTO E A INSTABILIDADE MORA EM BELÉM

Outubro 03, 2021

J.J. Faria Santos

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Há um limite para a estratégia de minimização dos conflitos e desvalorização dos erros e omissões. E ele torna-se óbvio quando um ministro (um candidato a futuro challenger dotado de verve e determinação) se atira à jugular do seu colega das Finanças. A inequívoca vitória do PS nas autárquicas (“… quando olhamos para os resultados globais no país, verificamos que se é verdade que o PS confirma não estar em condições de atingir uma maioria absoluta em eleições legislativas, também é manifesto que o PSD continua a larga distância desse mesmo PS, em autarquias, mas sobretudo em votos” – Paula Teixeira da Cruz, in Público, edição de 29/09/21) não pode iludir o desgaste de seis anos de governação, reflectido na perda de parte do voto urbano, embora seja manifestamente exagerado o anúncio da inversão do ciclo político (“Não houve nenhuma alteração qualitativa, nenhum ‘novo ciclo’” – Pacheco Pereira in Público, edição de 2/10/21), dado que nada nos permite concluir que essa perda não possa ser estancada ou invertida. A menos que a direita em recomposição consiga apresentar uma alternativa consistente e credível, o grande desafio do primeiro-ministro vai residir na dinamização do PRR em conjugação com a manutenção do controlo das finanças públicas. Uma economia altamente endividada permanece necessariamente  condicionada pelos humores dos decisores europeus, pelas oscilações da conjuntura e pela flutuação das taxas de juro, mesmo quando a confiança e o PIB crescem e o desemprego diminui. Neste contexto, a autoridade de um ministro das Finanças tem de ser preservada, o que não conflitua com o facto de este dever ter sensibilidade política para dosear a ortodoxia.

 

“Crises políticas nos próximos dois anos não fazem sentido”, disse o Presidente da República. O mesmo Presidente que em encontro recente com empresários os encorajou a ir “à luta” em prol de alternativas “políticas e eleitorais”. (Já não basta a concertação social e a acção de lobby? O que é certo é que o presidente da CIP entrou no campeonato das frases bombásticas, do género “O barco está a ir ao fundo e a banda continua a tocar” e “Não estamos aqui para pedir subsídios. O Estado que nos saia da frente”, esta última francamente temerária, tendo em conta o perfil e as motivações dos empreendedores nacionais.)  O mesmo Presidente que, citando São José Almeida, “age, em público ou através de informações que são dadas do Palácio de Belém a jornalistas, de forma a desgastar a imagem do primeiro-ministro”.

A “agência noticiosa” Marcelo Rebelo de Sousa (para usar a terminologia jocosa usada recentemente por Barata-Feyo para se referir a Marques Mendes) esteve, mais uma vez, na berlinda esta semana a propósito da substituição do Chefe do Estado-Maior da Armada. O que começou por parecer um exorbitar de poderes e uma falta de tacto governamentais, acabou por se revelar uma intrigalhada, onde convivem alegremente notícias de uma exoneração que nunca existiu, um parecer sobre a dita exoneração discutida e votada pelo próprio militar em risco de ser demitido (parece que a ética militar passa por cima dos conflitos de interesse…) e a suspeita de que Marcelo terá sido mal informado e “manipulado” pelo seu chefe da Casa Militar, aliás, um dos potenciais candidatos ao cargo em caso de vagatura. A tudo isto, o sempre prolixo Presidente, depois de uma tríade inicial de explicações, respondeu com uma lacónica nota com alusões a “equívocos”.

Num artigo editado no Público de 23/05/2020, Pacheco Pereira previu que o segundo mandato do Presidente iria ser “muito diferente do primeiro”, que “o teatro da afectividade (…) não é tão genuíno como se diz” e que “Marcelo é muito mais autoritário do que se pensa”, fazendo notar que ele “fez toda a carreira de cínico lúdico, inócuo e pouco importante nas ‘gentes’ dos jornais e nos comentários”. De facto, é difícil não ver sinais deste perfil em gestos como o de telefonar às 3h30 da manhã para dar os parabéns a Carlos Moedas pela vitória, ao mesmo tempo que faz constar que este feito muda a dinâmica do PSD, estragando as conjecturas do mestre dos factos políticos que já via a passadeira vermelha estendida para Paulo Rangel. Portanto, enquanto defende a estabilidade governativa e uma oposição forte, o Chefe do Estado vai, simultaneamente, desgastando o Governo e semeando a instabilidade no PSD. Deixo para os ingénuos a convicção de que tudo isto se passa em nome do interesse nacional.

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