A NARRATIVA DO SOBREVIVENTE
Setembro 27, 2021
J.J. Faria Santos
Paira no ar um aroma a “factos alternativos”. Há uma vibrante tendência para torcer os factos ao sabor das opiniões. Pundits e comentadores de toda a sorte tentam impor como cânone a sua percepção da realidade, apontando o fim de um ciclo, a vitória (?) inequívoca de um líder da oposição mal-amado e a frustração ambivalente de quem se preparava para lhe espetar a faca no dorso. E sobretudo a derrota (?) avassaladora do PS.
Mas…O PS não conquistou cerca de centena e meia de câmaras (menos 12 que nas anteriores eleições)? Sim, mas perdeu. E não conquistou o maior número de freguesias? Sim, mas perdeu. E não arrebanhou mais mandatos? Sim, mas perdeu. E, com excepção de Guarda e Leiria, não foi o mais votado em todos os distritos de Portugal continental? Sim, mas perdeu. E, no total nacional, não teve uma vantagem a rondar a dezena de pontos percentuais em relação ao segundo mais votado? Sim, mas perdeu, porque está desgastado e foi penalizado pelo eleitorado. Penalizado? Com este registo? Ainda me lembro do tempo em que a palavra derrota indicava menos votos e menos autarquias (enfim, uma excentricidade da era da aritmética). Ah, mas o PSD cresceu, em votos e autarquias! Então, questiono eu, perante o desgaste de seis anos de governação, é só isto que o líder da oposição tem para apresentar? Lisboa é uma conquista fulcral e infligiu um trauma irrecuperável na psique socialista! Lisboa é o Joker que vai transformar o Rio num oceano, impulsionado pela boa moeda. O resto é a paisagem bucólica de um país em doce remanso, a célebre província.
A história da noite eleitoral (tirando a excelente e inesperada vitória de Carlos Moedas contra um incumbente digno e com obra), do ponto de vista mediático e imediato (mesmo quando tinha a pretensão de adivinhar o futuro lendo o presságio), é a da consagração da narrativa do sobrevivente. O acossado foi erigido em fautor de um novo ciclo, mesmo que as oscilações do voto urbano não tenham sido muito relevantes, e uma derrota factual foi obliterada pelas vitórias parciais a gosto. A resistência foi elevada a máxima virtude política. E o facto político chegou a vias de facto com o sufrágio. Dizem que o mais votado não ganhou e chamam-lhe análise política. Numa noite de celebração e consternação, não houve choro e ranger de dentes; houve júbilo e Rangel de dentes retraídos a saudar o Carlos e a ignorar o Rui via Twitter, enquanto aguarda a melhor oportunidade para cravar os caninos na carótida do portuense com ADN alemão.