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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

A ELITE ESTÁ CANSADA DE UM PAÍS QUE NÃO A MERECE

Junho 27, 2021

J.J. Faria Santos

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A elite está cansada de um país que não a merece. Esta casta a que me refiro inclui sobretudo políticos, empresários e líderes de opinião, gente que, regra geral, aparenta apreciar a estabilidade e a moderação, mas que agora disfarça mal o seu asco por um povo que definem como demasiado submisso e desertor das batalhas da cidadania. Trata-se de gente que se tem em alta consideração, que está sempre à procura de um desígnio para Portugal, e com um discurso onde reluzem as sacrossantas reformas estruturais. Agora veem em cada esquina um inimigo e em cada rosto barbaridade. Os subalternos a quem compete gerir o dia-a-dia (enquanto eles se dedicam às grandes causas e aos grandes empreendimentos da mente) estão necessariamente sempre em perda, na fatal gestão da escassez de recursos, presos na pequenez da sua ambição, enredados na mercearia política (que a elite vê como um subproduto da arte de bem governar).

 

Esta elite cansa-se na presença do impasse. E como se diagnostica o impasse? A estratégia é simples e assenta na amálgama, na junção indiscriminada de incidentes e acidentes, erros e lapsos, deslizes de linguagem e afrontas verbais, eventos previsíveis ou inesperados. Um apelo disparatado à tomada de Sevilha pelos adeptos portugueses, uma pirueta presidencial a declarar inimaginável o recuo na estratégia pandémica, uma tirada infeliz a associar o Plano de Recuperação e Resiliência a uma ida ao banco, uma polémica rasca acerca das comemorações do 25 de Abril, a troca de valores fundamentais por um exacerbado dever de neutralidade, uma oposição estagnada alimentada a tiradas no Twitter e um Governo assoberbado com o semestre europeu a gerir a pandemia e as gaffes ministeriais. Juntam-se todos os ingredientes na Bimby da nação e sai um impasse angustiante agravado pelo medo. O medo? Sim, a elite é vagamente humana e vulnerável, e martela com frenesim a tecla do ritmo lento da vacinação e da insuficiência de testagem. Já o povo, esse é mais sereno. Despojado do privilégio, aprendeu a resistir, a avaliar o possível e a distinguir o indesejável do inevitável. Não é conformismo, é lucidez.

 

Dizem que António Costa não é um visionário, que não tem um projecto para o país, que se limita a gerir a conjuntura numa geringonça inorgânica de geometria variável com inclinação à esquerda. (Se fosse mais arrojado, não estaria a ser acusado de megalomania e de não ter noção da realidade?) Admitamos que a premissa é verdadeira. Será de espantar que a sua popularidade resista quando as alternativas no discurso público se dividem entre o populismo desbragado dos oportunistas e o desalento paralisante de uma elite incapaz de estar à altura dos seus supostos pergaminhos?

 

Imagem: Slim Aarons (photos.com by Getty Images)

PARA S.BENTO, RAPIDAMENTE E EM FORÇA!

Junho 20, 2021

J.J. Faria Santos

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Lemos o desabafo de Francisco Mota, ex-líder da Juventude Popular, no Facebook (“Juntemos os patriotas, os de ontem e os de hoje, e sob a liderança das Forças Armadas tomemos o Palácio de Belém e o Palácio de São Bento”) e este arremedo de assalto aos palácios na Primavera parece a sinopse de uma comédia de Woody Allen num país sul-americano. Mas depois vimos o Cotrim no seu arraial, em pose de Robin Hood da alta burguesia, de jeans e ténis, a manejar o arco e a flecha, corajosamente apontando para um adversário político, e percebemos que a sátira é lusitana. Longe vão os tempos em que a direita se indignava com o radical de esquerda que ameaçava fazer tremer as pernas dos banqueiros alemães impondo uma moratória de termo incerto ao pagamento da dívida pública. Agora, a estabilidade é perniciosa, o reformismo insuficiente e a revolução adquire encantos inusitados.

 

Para ser rigoroso, devo referir que o impetuoso Mota se apressou a declarar-se “um democrata convicto” que apenas pretendia alertar para a emergência de uma “revolução cultural” (é revolução, mas é cultural, assim uma espécie de golpe de Estado das mentalidades, sem subversão da ordem pública, sem derramamento de sangue e sem necessidade de se alistar para desfilar em veículos horrorosos vestido de camuflado…)  Já o líder da Iniciativa Liberal considerou que nem merece comentário o pressuposto de que jogos de setas com alvos com o rosto de adversário políticos possam ser encarados como apologia da violência. Como se gestos como este não contribuíssem para reforçar a polarização, inibir a construção de pontes e, sobretudo, dinamitar a livre e franca discussão de ideias. Para a Iniciativa Liberal, parece ser preferível sacrificar a pedagogia democrática a perder a oportunidade de criar um meme com potencial para se tornar viral ou um cartaz espirituoso para animar os canais de notícias por cabo.

 

A culpa talvez seja, do ponto de vista desta “direita revolucionária”, do “Estado Novo Socialista” (na definição de Francisco Mota). Tempos houve em que um animado debate cá no burgo acerca da natureza do regime salazarista apelava ao rigor das definições e das classificações. Autoritário? Ditatorial? Fascista? Pois agora, no linguajar da direita oprimida, António Costa chefia um governo num regime comparável a um outro que se caracterizou pela compressão das liberdades, pela censura, pela criação de uma polícia política, pela perseguição, encarceramento e tortura dos opositores políticos, pela tacanhez de espírito e pelo apelo ao conformismo e à obediência.

 

Estagnada nas sondagens e sem iniciativa política (porque incapaz de formular uma alternativa consistente, para além do rancor e da exploração do “escândalo do dia”), a direita desespera enquanto vai tentando vislumbrar sinais de esperança no “activismo presidencial” ou no hipotético interesse de Costa num cargo europeu. O que é de lamentar, porque a acção governativa pede escrutínio válido e a qualidade da democracia exige alternativa credível. Em vez de a formular, a direita revolucionária prefere remoer a nostalgia do Estado Novo salazarista, sem perceber que, como notou no Ípsilon António Araújo (em recensão à obra Salazar: O Ditador que se Recusa a Morrer de Tom Gallagher), “no legado de um ditador, não é possível separar uma parte ‘boa’ de uma parte ‘má’, ficando apenas com uma, a mais sadia, chame-se ela estabilidade política, crescimento económico ou paz e ordem nas ruas”.

 

Imagem: Facebook de Francisco Mota (autor do meme não identificado)

ANATOMIA DA GREI VII - SERVIÇO DE URGÊNCIA

Junho 13, 2021

J.J. Faria Santos

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“Matem-me antes que eu morra. Morrer dói muito”, berrava o homem por detrás do biombo. Como numa novela radiofónica, um anacronismo na era da imagem, era o som que desenhava a realidade, permitindo à imaginação fazer o retrato-robô do paciente. Estendida numa maca, num reservado contíguo, Lara, a ser tratada a uma taquicardia, ouvia o clamor, entre a compaixão e o divertimento, e imaginava um homem sob a influência do álcool ou da exasperação. Um homem talvez sexagenário ou septuagenário, embrutecido pela doença ou pela vida. Estranho a delicadezas e renitente às práticas da civilidade.

 

Quando lhe ofereceram chá ou leite, declinou requerendo vinho. À sugestão de um lanche com bolachas, declarou a sua preferência por carne. A dada altura, a irritação subiu um ou dois patamares, soltando expressões em calão, o que motivou uma intervenção verbal mais assertiva de um enfermeiro, exigindo respeito e que não perturbasse os outros doentes do serviço de urgência. Mais tarde, declarará que pretendia “ir embora” (já não era relevante “matarem-no antes que morresse”?). Teria como resposta que poderia fazê-lo, desde que “assinasse direitinho” o termo de responsabilidade. Mas, claro, é difícil manter um rumo perante um percurso sinuoso. A identidade é um arabesco, um gatafunho. E Lara, sem conhecer o desfecho do episódio clínico do vizinho do biombo do lado, ficou a meditar que a vida às vezes dói tanto que até parece que estamos a morrer. Isto enquanto por via intravenosa, uma mensagem sob a forma medicamentosa explicava ao seu coração acelerado a vantagem da maratona sobre as provas de velocidade.

 

Imagem: Wikimedia Commons

A HISTÓRIA ALTERNATIVA DE JOSÉ GOMES FERREIRA

Junho 05, 2021

J.J. Faria Santos

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Quem melhor que José Gomes Ferreira, naquele seu estilo desassombrado a escorrer auto-suficiência, para nos apresentar os factos alternativos da História de Portugal? Uma enorme paixão pela matéria, “as modernas tecnologias de comunicação e a facilidade de acesso às fontes directas” permitiram-lhe escrever a obra “Factos Escondidos da História de Portugal” (“durante dois anos e meio, nos tempos livres”), com a qual pretende desafiar o meio académico, onde, reflecte em entrevista ao Expresso, “há muita inércia”. Embora admita que “a maior parte dos historiadores trabalha muito, bem e com honestidade (…) mudar a História dá muito trabalho, exige muita investigação, muito esforço para sustentar a argumentação”. E depois, conclui ele triunfantemente, “os historiadores oficiais inibem-se de escrever outras versões da História porque receiam ser ostracizados pelos seus pares”.

 

E se o leitor se interroga como se conjuga a ideia do trabalho árduo do historiador com o diletantismo de uma obra concebida nos tempos livres, o que dizer da sustentação da argumentação? Seguindo um conselho de Rui Tavares no Público, assisti ao episódio do podcast Falando de História, dos historiadores Roger Lee Jesus e Paulo M. Dias, que se dedicaram a esmiuçar “as teorias rocambolescas”, os “erros factuais”, as teses “sem sustentação documental”, “a compilação de pseudo-factos secretos” presentes no volume de Gomes Ferreira, que, em suma, se resumirá a “uma mixórdia de ideias feitas sem sentido”, revelando “uma ignorância enciclopédica sobre o que se produziu e produz academicamente em Portugal”.

 

Com o pretexto de contestar o que ele chama de verdade histórica oficial (como se estivesse em causa uma disciplina monolítica, sem lugar ao confronto de teses), o que Gomes Ferreira acaba por fazer, impulsionado pela sua paixão pelo politicamente incorrecto e embebido em perceptíveis convicções ideológicas, é pretender fazer equivaler teorias de conspiração, conjecturas mal-amanhadas e factos alternativos a sustentadas teses académicas. À boa maneira das redes sociais, cujo funcionamento tende a reforçar ideias e conceitos preexistentes, na concepção do seu livro (que muito deve a pesquisas na Internet…) Gomes Ferreira, citando os autores do podcast, fez “uma escolha muito selectiva da bibliografia” e procurou “adaptar as fontes à [sua]teoria”. Para quê pôr em causa a sua presciência e o seu talento natural para a denúncia, procurando abarcar documentos que pudessem instalar a dúvida, obrigando-o a aproximar-se da amestrada “História oficial”?

 

A culpa é da política, dos governos e do Estado. Porque “quem manda na História são os agentes do Estado nomeados pelos governos” e, por conseguinte, factos relevantes são omitidos por conveniência política ou diplomática. Eis a grande revelação. E os domesticados historiadores, presume-se, sacrificariam o seu trabalho e prescindiriam de ver reconhecido o mérito da descoberta ou da inovação em nome de uma lealdade norte-coreana ao poder do dia, ao mesmo tempo que garantiam prebendas estatais. Deve depreender-se daqui que os historiadores vivem condicionados por uma tenebrosa teia censória? Nem por isso… Como explica o autor ao Expresso: “Em Portugal, só é silenciado quem quer, isto é, quem não quer ter o trabalho de procurar argumentos para fundamentar opiniões diferentes. Neste caso, das duas uma: ou a pessoa diz o que é politicamente correcto e o mesmo que todos os outros dizem, ou se cala, por comodismo. Há muita autocensura em Portugal e há pouca ou nenhuma censura.”

 

Ao contrário do Portugal contemporâneo, que ele parece ver como uma choldra, produto da “esquerda irresponsável, da direita dos interesses e do grande centrão da indiferença”, Gomes Ferreira tem uma visão grandiosa e laudatória do passado da nação portuguesa, um activo que ele pretende reavaliar. Daí esta publicação, que afinal, confessa ele, “não é um livro de História. Este é um livro de política, ou melhor, um livro com a minha interpretação política sobre a maneira como nos é contada a História de Portugal e sobre o que tem de ser mudado.” Está explicado. Não é um livro de História, nem sobre “factos escondidos” que afinal estão a céu aberto na amálgama do ciberespaço ou em bibliografia “seleccionada”. No fundo é uma espécie híbrida, que vai sofrendo mutações, quiçá um gambozino, que terá continuidade. Como um investidor que doseia a audácia com o cálculo, o autor tem em carteira mais factos escondidos para explicar num segundo volume. E, quem sabe, mais tarde se dedique, “nos tempos livres”, à astronomia, para encetar uma corajosa denúncia das mistificações da NASA. Quem em dois anos e meio, nos tempos livres, é capaz de credibilizar teses históricas que reputados historiadores em dezenas de anos de aturado estudo levianamente descartaram, é seguramente homem para revolucionar o conhecimento do cosmos. Vai-se a ver e Marte tem uma tonalidade magenta. Ou lápis-lazúli.

 

Imagem: magg.sapo.pt

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