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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

FALTA DE VISOM

Novembro 29, 2020

J.J. Faria Santos

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A Dinamarca deu ordem para abater 17 milhões de visons. A primeira-ministra prestou declarações de voz embargada e lágrimas nos olhos, e pediu perdão. Ainda que a decisão, apesar de ter sido tomada com uma base legal aparentemente inexistente, tenha uma motivação perfeitamente racional: uma mutação do vírus SARS-CoV-2 encontrada em visons foi também encontrada em cerca de 200 pessoas, pondo em risco a eficácia que uma vacina poderá vir a proporcionar. A primeira-ministra acabara de visitar uma quinta de criadores de visons, os quais revelaram as emoções despertadas por esta razia. Embora para alguém distante destas actividades possa escapar a subtileza da diferença entre mandar abater animais por razões sanitárias ou para esfolá-los para a produção de bens que confortam e embelezam a nossa pele.

 

António Guerreiro escreveu no Público (Ípsilon) que este episódio “faz da Dinamarca uma espécie de Treblinka dos animais”, acrescentando que “com toda a seriedade e sem qualquer ironia, o humanismo é isto: pôr todas as espécies, vivas ou esfoladas, ao serviço do homem.” Como acontece com muitas das medidas que pretendem controlar a pandemia, o impacto económico é significativo: as 1139 quintas de criadores existentes no país empregam cerca de seis milhares de trabalhadores, representando 40% da produção global de pele de visom. A emoção também está aqui, na perda de rendimentos, no golpe sofrido por um modo de vida, mesmo que transitório.

 

Num desenvolvimento inesperado, mas cientificamente explicável, alguns visons, enterrados empilhados a uma altura de dois metros, emergiram das valas comuns. As suas carcaças, quais zombies assintomáticos, graças à libertação de gases proporcionada pelo processo de decomposição, fizeram a sua aparição, como se quisessem evocar uma espécie de monumento ao visom desconhecido, caído na retaguarda da batalha contra a pandemia. À falta de visom na quinta do criador contrapõe-se um cenário em que ele se reergue no cemitério das decisões dilacerantes.

 

Imagem: lifestyle.sapo.pt

O PODER E O ESCRÚPULO

Novembro 22, 2020

J.J. Faria Santos

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Das várias acepções em que a palavra “escrúpulo” pode ser utilizada, destaco duas: “forte sentido moral” e “inquietação de consciência depois de cometer uma falta” (Infopédia). Ao dar a sua concordância ao acordo do PSD com o Chega nos Açores, Rui Rio desvalorizou o primeiro, ao passo que a leveza e o pouco rigor com que o justificou demonstram a ausência da segunda.

 

Em Janeiro de 2018, antecipando o seu mandato enquanto líder do PSD, Manuel Carvalho traçou no Público o perfil de Rio, escrevendo que “há nele uma mistura de convicção genuína na bondade das suas certezas e a crença numa predestinação para grandes feitos”. E acrescentou: “No homem comum que diz gostar de ser coexiste uma ambição que, em conjunto, o tornam ao mesmo tempo temível e frágil, inspirador e banal, visionário e provinciano, solidário e autocrata, austero e demagogo, afável e feroz”. Carvalho via o potencial PSD de Rio como “um partido que vai do centro-direita ao centro-esquerda”, porventura “um saco de gatos onde cabe tudo”, “uma amálgama da qual a personalidade de Rui Rio vai emergir”. Quase três anos depois sabemos que o “saco de gatos” não desdenha confundir-se com a extrema-direita e que o líder demagogo está a eclipsar o austero.

 

E a “amálgama” tornou-se problemática. Como argumentou um conjunto de personalidades (entre elas, Adolfo Mesquita Nunes, Francisco José Viegas, Miguel Esteves Cardoso, Miguel Poiares Maduro e Pedro Mexia) num manifesto intitulado A clareza que defendemos, não é admissível que a direita se deixe confundir com “políticos e políticas que menosprezam as regras democráticas, estigmatizam etnias ou credos, acicatam divisionismos normalizam a linguagem insultuosa, agitam fantasmas históricos, degradam instituições. A aceitação desta amálgama ideológica por parte das direitas democráticas constitui uma afronta à sua história e o prenúncio de um colapso moral.”

 

Um dos traços característicos das atitudes populistas é o menor grau de confiança nos media, frequentemente encarados como parciais e acusados de propagarem notícias falsas. Eis um aspecto que talvez una os líderes do Chega e do PSD. Thomas Jefferson pode ter afirmado que preferiria “jornais sem governo a governo sem jornais”, mas Rio não se coibiu de considerar, em 2013,  que a comunicação social tem “sido também uma das responsáveis da degradação do regime democrático em Portugal”. No ano anterior, considerando que tudo era permitido aos media, declarava que não era possível “continuar num regime democrático com a comunicação social sem ter balizas para a sua actuação”.

 

E o que balizará a acção de Rio face ao Chega? A entrevista concedida à TVI foi reveladora. “O Chega hoje é uma federação de descontentes, não é bem um partido cimentado”, explicou ele. “O tempo vai obrigar o Chega a ser um partido pela positiva”, prognosticou. O mais provável mesmo é que o ensaio de colaboração com o Chega tenha contribuído para a convicção de Rui Rio de estar mais próximo de ser primeiro-ministro. “Sim, isso acho que sim”, admitiu. É o perfume do poder a tentar abafar o odor a degenerescência moral. A busca legítima da alternância democrática não pode ser feita à custa da degradação do próprio regime.

 

Imagem: sapo.24

 

CONFINADAMENTE DESALENTADO

Novembro 15, 2020

J.J. Faria Santos

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Confrontado com a omnipresença mediática de figuras sem nenhum talento especial ou arte que as enobreçam, com a trivialidade e a encenação bacoca que alastram pelas redes sociais e com a relevância noticiosa atribuída a um partido unipessoal, cujo representante máximo se celebrizou por invocar a toda a hora um sentimento que manifestamente lhe falta, as palavras de Bernardo Soares (in Livro do Desassossego) parecem-me mais actuais que nunca: “Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação”.

 

Há algo de sinistro na expressão “seguidores”, que faz lembrar os stalkers (e a sua fixação patológica nos seus objectos de desejo); é preferível a designação fãs ou admiradores. Idealmente, seria de esperar que os admiradores procurassem notícias acerca da obra e dos projectos dos seus ídolos, porém, nesta época de simulação de proximidade e de encenação da vida privada e da vida íntima, o que desperta a atenção são publicações do género: “fulano revela que está apaixonado”, “sicrano surpreende mulher com viagem de sonho”, “it girl sensual exibe rabo incrivelmente tonificado” ou “modelo seminu mostra as suas tatuagens”. É a vida em directo, as temporadas sucessivas da série da vida irreal, o dia de cada um de nós no star system das nossas existências.

 

Enfadonho, seguramente, mas talvez não particularmente grave, se não nos distrair do essencial. Que é manter a decência e a humanidade em tempos de covid, desalento e já algum desespero, circunstâncias em que um verdadeiro artista (de que não sou seguidor, nem perseguidor, apesar da retórica abjecta que necessita ser combatida) se exibe em toda a sua miséria. O líder do Chega, que Francisco Assis definiu como um “charlatão” que elevou a “patamares quase demenciais” a “tarefa de afirmar tudo e o seu contrário”, concedeu uma entrevista à Lusa onde criticou Salazar porque “atrasou-nos muitíssimo em várias aspectos”. Antes, porém, foram retirados de uma estante no gabinete onde concedeu a entrevista vários livros acerca do ditador. Encenação, palavra volátil. O gesto é tudo para este artista português com um guião inspirado no populismo universal.

 

IMAGEM: "Family Walking Day" de Alena Shymcnenok (courtesy of Bert Christensen)

TRUMP DESINSTALADO

Novembro 08, 2020

J.J. Faria Santos

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Os eleitores, já se sabe, comandam o painel de controlo da democracia. Convencionou-se que o procedimento comummente designado por sufrágio (que inclui a votação por correspondência) termina com a contagem dos votos e a proclamação dos resultados. Num Estado de direito democrático não passa pela cabeça de qualquer candidato com carácter ou noção do ridículo exigir a interrupção da contagem ou a continuação desta ao sabor dos seus interesses ou do seu desgovernado arbítrio. Os americanos escolheram o programa e a figura de Joe Biden e preparam-se para desinstalar Donald Trump.

 

O derrotado estrebucha. Ao seu estilo: grandiloquente, inane e infundamentado. Os seus correligionários dividem-se entre os que defendem a legalidade e os que não resistem ao servilismo e à partidarite aguda. O Conselho Editorial do Washington Post opinou de forma cortante que “A História recordará quem, em tempos perigosos, ajudou a democracia americana – e quem ajudou o Sr. Trump a debilitar a democracia americana”, e que “não há compromisso possível entre a verdade a as mentiras do Sr. Trump”. Já Maureen Dowd, colunista do New York Times, diverte-se a ridicularizar a reacção e a argumentação do candidato derrotado, notando que para quem era encarado como “o génio maligno da manipulação dos media”, berrar que se está perante uma “eleição roubada” porque está “a perder” é manifestamente patético. Seria de esperar, escreve ela, que ele congeminasse algo de “épico”, “uma conspiração grandiosa”.

 

Agora que ele foi eleito Presidente, Maureen Dowd vê na carreira política de Joe Biden a prova de que o escritor F. Scott Fitzgerald estava enganado e que, de facto, existem segundos actos na vida americana. Na política existem momentos que requerem um visionário, um audacioso, um portador do archote da esperança e do dinamismo, mas, noutras alturas, o mais importante é restaurar a normalidade, a dignidade e a compostura. É preciso remover o MAGA (Make America Great Again) e anunciar o MADA (Make America Decent Again). E a decência indispensável conviverá com a grandiosidade possível.

 

Imagem: www.reddit.com

O PÚBLICO, O PRIVADO E A VILÃ

Novembro 01, 2020

J.J. Faria Santos

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O ministro da Saúde belga anunciou que o seu país se encontra no limiar de uma situação em que “já não há controlo sobre o que se passa”. Angela Merkel fala do risco de uma “emergência sanitária” como pretexto para o encerramento parcial de restaurantes, bares e teatros. Em França, responsáveis médicos dizem que o país “perdeu o controlo da epidemia” e falam em “situação crítica”, ao mesmo tempo que Emmanuel Macron decretou um novo confinamento. Boris Jonhson prepara-se para decisão idêntica no Reino Unido. Será caso para dizer, como o director do Expresso, que cada um dos Governos destes países “foi incapaz de se preparar para o dia de hoje”? Ou que “não se percebe tanta incompetência”?

 

Na verdade, e para ser rigoroso, devo clarificar que João Vieira Pereira se referia aos governantes portugueses, mais especificamente à ministra da Saúde, suspeita, aos olhos dele, de sofrer de enviesamento ideológico e de, por conseguinte, embirrar com os privados. Curiosamente, em Agosto, na sua página na Internet, o Expresso citava o Jornal de Negócios, que fazia referência a dados do INE, para titular que o “Estado gasta 41% do dinheiro destinado à saúde com privados”, concluindo que “os privados dependem em larga medida do dinheiro público, seja directamente do SNS, ADSE, Segurança Social ou por deduções fiscais”.

 

Significa isto que não é legítimo criticar as opções ministeriais ou as deliberações da DGS? Nada disso. O dever de solidariedade e de colaboração em tempos de grave crise não pode excluir o escrutínio e a censura. O que não se recomenda são as diatribes simplistas ou destemperadas na linguagem, nem que se caia na ingenuidade de ignorar, citando Pedro Adão e Silva, que “o privado não só não está vocacionado para responder à covid (praticamente não tem vagas UCI) como tem resistido a tratar doentes da pandemia”. Adão e Silva terminou o seu artigo no Expresso de 24/10/2020 com uma espécie de sugestão: “Se o privado quiser contribuir, liberte recursos humanos para trabalharem mais horas no SNS – que está, de facto, melhor equipado e tem mais capacidade para responder à pandemia.” Defendendo uma colaboração activa dos sectores público, privado e social no combate à pandemia, parece-me legítima a opção pelo princípio de que o sector privado é complementar do SNS, competindo a este recorrer aos serviços daquele quando os seus recursos se tornarem insuficientes. Sem esquecer que a eficácia do combate à covid-19 depende muito do comportamento individual de cada um de nós.

 

O que é lamentável é que um desejável espírito crítico coexista, porventura devido à fadiga pandémica, com um relaxamento na linguagem. E que em cada canto se descubra um especialista em epidemiologia ou um ás em gestão de crises económico-financeiras. Só assim se explica que um opinion maker tenha usado “linguagem de carroceiro” (citando Miguel Sousa Tavares) para se referir a Marta Temido, ou que o “coleccionador compulsivo de roseiras antigas e modernas” e pianista das horas vagas que dirige o Governo Regional da Madeira tenha classificado como “quase suicidário” as equipas madeirenses  deslocarem-se ao território continental para a prática desportiva.

 

Imagem: 24.sapo.pt

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