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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

CORPUS MARCELLUS

Outubro 25, 2020

J.J. Faria Santos

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O Corpo de Deus celebra-se à quinta-feira. O corpo de Marcelo exibe-se à segunda e carrega com o opróbrio durante o resto da semana. Não sei como é que ainda não apareceu nenhuma petição pública, promovida por uma influencer, a exigir um Presidente fit. E que tal a Men’s Health desenvolver um programa de treino que esculpisse o torso presidencial e o exibisse na capa de uma das futuras edições da revista?

 

O Presidente do povo pôs-se à-vontadinha e a elite mediática carregou na prosa, alegando um atentado à dignidade da função, enquanto nas redes sociais se sucediam os memes impiedosos. O episódio deu mesmo origem a um editorial num jornal de referência (Público), no qual Manuel Carvalho defendeu que “a função presidencial se desgasta com estes gestos” e que “a exposição do seu corpo nu é um excesso que atenta ao bom gosto”. Clara Ferreira Alves concorda, usando o plural majestático na sua crónica no Expresso para declarar: “Preferimos os torsos clássicos dos museus”. E acrescenta, sentenciosa, que “um Presidente da República irreverente é diferente de um Presidente da República ridículo”.

 

Durante um certo período da Revolução Francesa foram variando as representações da Marianne, a efígie da República, entre a versão austera e bem-comportada e uma outra irreverente de barrete frígio e peito à mostra. Marcelo Rebelo de Sousa, o mais alto magistrado da nação portuguesa, é a personificação da irreverência. Por osmose, o provedor do povo é o povo. E o povo, desinibido e prático, não se esquiva ao olhar do outro.

 

Podia o Presidente ter evitado o striptease parcial? Podia (e devia), mas a inoculação não teria sido a mesma coisa. Em todo o caso, nada disto justifica tanto alarido. A agenda mediática e o bruaá das redes sociais tornam-se, muitas vezes, extremamente cansativos na sua futilidade. Apetece fazer um intervalo. Apetece declarar, como a jornalista do romance de Ana Margarida de Carvalho  Que Importa a Fúria do Mar, “A vida. Desejo que embrulhe, não é para viver já.”

AINDA NÃO CHEGÁMOS À AMÉRICA

Outubro 18, 2020

J.J. Faria Santos

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“O regime está podre – e Marcelo é cúmplice”, bradou João Miguel Tavares. Um dia antes, no Observador, já José Manuel Fernandes se antecipara, proclamando que “Marcelo é cúmplice de Costa”. Este jornal digital é, aliás, uma fonte inesgotável de opiniões que nos querem escancarar os olhos para o apocalipse que aí vem. “O país caminha, passo a passo, para um buraco”, escreve Sebastião Bogalho. Já Alberto Gonçalves, não só actualiza a demonização - “o dr. Costa foi o pior que podia ter acontecido a Portugal” – (em tempos este ceptro pertencia ao eng. Sócrates…) como faz questão de alardear, retrospectivamente, a sua condição de profeta: “Há exactamente cinco anos (…) previ, porque era fácil prever, que o dr. Costa arrastaria o país para uma ditadura”. Infelizmente, são artigos premium, pelo que se quisermos abarcar a totalidade do pensamento do colunista teremos de despender algum capital, o que se me afigura pouco estimulante em relação a um órgão de comunicação caracterizado por uma unicidade de pensamento que torna a leitura monótona.

 

A receita é a do costume: juntam-se um conjunto de factos que aparentemente traduzem uma tendência, faz-se com eles um amálgama que aparente degenerescência, adiciona-se uma retórica apelativa ou incendiária e está pronto a degustar (desgostar) o prato da indignação do dia. Que importa que não seja suportada pelos factos a noção de que os fundos europeus foram pasto para fraudes em grande escala? Que importa que a percepção de um elevado grau de corrupção não seja depois comprovada com dados reais e objectivos? O que parece relevante são os “factos alternativos” e, sobretudo, as teorias da conspiração.

 

O grande argumento, implícito ou explícito, é o de que o sistema de freios e contrapesos não funciona em Portugal. A grande ironia é que nos EUA, a terra do checks and balances, o Presidente usa a Casa Branca para comícios de reeleição, recorre a organismos do Estado para perseguir adversários políticos, manipula o ministro da Justiça a seu bel-prazer, não hesita em utilizar as forças de segurança em acções de pura propaganda, nomeia juízes para o Supremo numa base puramente ideológica, mente compulsivamente e aparenta ter uma atracção inexplicável por tiranos e inimigos do Estado americano. Já em Portugal, temos “um filme de terror” (João Miguel Tavares). Costa e Marcelo afastaram Joana Marques Vidal! Costa e Marcelo afastaram o presidente do Tribunal de Contas (que o próprio primeiro-ministro nomeara)! O PS, argumenta Tavares, quer controlar tudo, e o “apodrecimento do regime democrático português” tem a cumplicidade de Marcelo. A troco de quê? Do apoio à recandidatura?

 

Certa direita parece acreditar que só sairá de crise se se aproximar do argumentário do Chega, e se acenar a cada instante com o espectro do socratismo. E desespera com o tacticismo presidencial, empenhado em tornar evidente o génio com que tenta conciliar o sentido de Estado e o papel congregador e unificador da sua magistratura, o desejo íntimo de criar condições para a alternância de regime que favoreça a sua família política, e ainda as exigências de uma reeleição com um score significativamente superior ao da primeira eleição. Certa direita, até aquela que tem relutância em rotular de fascista ou ditatorial o regime de Salazar, vê agora a ditadura em cada esquina. Não é porque António Costa decidiu, a propósito de uma app, sugerir uma fórmula legislativa disparatada, inaplicável e prepotente que se transformou num ditador em potência. Ainda não chegámos à América, onde o (perigoso) delírio chega ao ponto de um elevado número de apoiantes de Trump acreditarem que membros do Partido Democrata, actores de Hollywood, o Papa Francisco e Angela Merkel (que seria neta de Hitler…), entre outros, fazem parte de uma rede pedófila. E vampiresca, dado que também bebem o sangue das vítimas.

 

Foto: Clara Azevedo (Expresso.pt / Gabinete PM)

 

O CANSAÇO DO NOVO NORMAL

Outubro 11, 2020

J.J. Faria Santos

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Cansaço. Cansaço do novo normal que nos conduziria ao Vamos ficar todos bem (irrealista, claro, mas pronunciado com o seu quê de fé, voluntarismo e superstição). Sabíamos e sabemos que não vamos ficar todos bem, mas ao espalhar a palavra de ordem era como se remetêssemos a fatalidade para o reino dos números, uma contagem estatística que merece o nosso lamento e a nossa comiseração, ao mesmo tempo que nos providencia a ilusão de que os nossos estão a salvo. Como escreveu Albert Camus (A Peste): “O flagelo não está à medida do Homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um mau sonho que vai passar. Ele, porém, não passa, e de mau sonho em mau sonho, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções.”

 

Com os números em modo alpinista, com a implosão do achatamento da curva, irrompe em cada um de nós o epidemiologista, o especialista em saúde pública, o expert em planeamento e prevenção. O espectro de uma ameaça crescente alimenta a descrença na acção das autoridades e a impaciência pelo ritmo do progresso científico, que tarda em materializar-se sob a forma da miraculosa vacina. O que não impede os mais afoitos de se interrogarem se os malefícios e a letalidade do vírus justificam a vida em suspenso. E o cansaço. Oscilamos, pois, como um pêndulo bipolar, entre a disciplina que o receio inculca e a rebeldia que o nosso desejo de liberdade instiga. Não custa reconhecer como é difícil gerir o equilíbrio entre a acção responsável e o eventual comportamento de risco (por desejo ou necessidade), que se quer calculado.

 

O cansaço acabará derrotado pelo instinto de sobrevivência, pela capacidade de resistência à adversidade, simbolizada por aquilo que Camus descreveu como “uma parada de homens e mulheres novos em que pode ver-se essa paixão de viver que cresce no seio das grandes catástrofes”. É necessário que esse cansaço seja transitório e gerível, de forma a mantermos um comportamento responsável, que não ceda ao pânico, mas também não dê crédito a proclamações fantasiosas ou grotescas à la Trump, e que, sobretudo, faça justiça à lição que o escritor francês inscreveu nos derradeiros parágrafos de A Peste – “(…) o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar do que a desprezar.”

 

(A Peste de Albert Camus tem edição Livros do Brasil/Porto Editora e tradução de Ersílio Cardoso)

Ilustração:Cartoon de Cristina Sampaio para o jornal Público

 

O RETRATO DE MELANIA TRUMP

Outubro 04, 2020

J.J. Faria Santos

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Consta que Melania não suporta Ivanka. E vice-versa. Referir-se-á à enteada com o epíteto desdenhoso de “a princesa”, a qual retribuirá na mesma moeda, apelidando a madrasta de “o retrato”. Retrato, porquê? Porque ela raramente fala. Bom, o silêncio pode ser eloquente. Mesmo que revele somente frivolidade, desinteresse ou um exacerbado sentido de autopreservação. Podemos sempre adicionar o factor decorativo (correndo o risco de engrossar as fileiras do patriarcado repressor e condescendente), mas a verdade é que a senhora Trump nunca mostrou na defesa das causas típicas de uma primeira-dama o empenho que devota à preservação da sua beleza ou à divulgação dos seus fashion statements. A sua figura pública (algures entre a coreografia do poder e o reality show televisivo) semeia, ocasionalmente, sinais de desobediência e rebeldia (um esgar irritado aqui, uma mão recusada ali…), mas tudo pode não passar de um pouco subtil esquema de negociação de privilégios matrimoniais num casamento atípico. Não seria surpreendente que, a destoar da sua beleza exótica, e tal como Dorian Gray, Melania mantivesse escondido num quarto desabitado um quadro que espelhasse a sua mesquinhez interior, onde, para citar Oscar Wilde, “a lepra do pecado devorava lentamente o rosto”.

 

E que comportamentos ou afirmações censuráveis podem ser atribuídos a Melania? Kali Holloway, num artigo para o Daily Beast em meados de Setembro, defendeu que a maneira como ela mente profusamente é a prova da sua semelhança de carácter com Donald, definindo ambos como “centrados nos seus interesses, fabulistas com a mania das grandezas, espalhando falsidades de cada vez que abrem a boca”. Segundo ela, Melania mentiu sobre uma miríade de assuntos, desde as suas habilitações literárias (não se licenciou, ficando-se pela frequência do 1º ano) à quantidade de línguas que fala (supostamente 6, mas ninguém a terá ouvido exprimir-se além do esloveno e do inglês), passando pela sua idade e pelas cirurgias plásticas. Holloway acusa-a de cumplicidade com o marido, ao desvalorizar ou ignorar em Donald o “mulherengo em série, mas também o predador sexual, a mentira patológica e o racismo virulento”.

 

Se Donald tem uma visão transaccional da actividade política, onde o que prevalece é a afirmação do poder e a capacidade de negociação, pode-se dizer o mesmo da primeira-dama, ou não tivesse ela aproveitado o início do mandato presidencial para renegociar o acordo pré-nupcial. E quando em 2015 lhe perguntaram se teria casado com ele se ele não fosse rico, a resposta surgiu sob a forma de outra pergunta: “Se eu não fosse bonita, acha que ele ficaria comigo?” É caso para dizer, parodiando de forma não particularmente original um standard do cancioneiro americano, The Lady is a Trump. Como também nota Kali Holloway, num momento de “transparência acidental”, Melania revelou encarar a sua condição de primeira-dama como uma oportunidade única de lançar “uma marca comercial de base ampla numa múltipla categoria de produtos”. Do mesmo modo que os concorrentes de um reality show amealham reconhecimento e popularidade que depois capitalizam em “presenças” em eventos e outros proventos comerciais, Melania Trump (à semelhança do resto da família, diga-se) viu no mandato do marido sobretudo um gigantesco golpe publicitário. Resta-nos admitir que para presenças em eventos, nada melhor do que um retrato.  

 

Imagem: Wikimedia Commons

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