O REGRESSO DA MÚMIA (E A HABILITAÇÃO DE HERDEIROS)
Setembro 27, 2020
J.J. Faria Santos
“Os afectos do professor Marcelo foram úteis para desanuviar do estilo múmia paralítica”, disse Ana Gomes, entrevistada no programa Isto É Gozar com Quem Trabalha. A alusão depreciativa ao anterior chefe de Estado suscitou críticas de quem, como um dos directores-adjuntos do Expresso, considera que “o insulto não é de todo em todo tolerável”.
Em 2001, durante o seu discurso numa conferência do Partido Conservador, Margaret Thatcher, aludindo à sua passagem por um cinema no trajecto para Plymouth, aproveitou para fazer uma piada, explicando que ao contrário do que lhe fora dito a sua presença era aguardada porque o cartaz anunciava o regresso da múmia. Na verdade, parece que o seu escasso conhecimento da cultura popular a impediu de perceber que se tratava de um filme de terror, pelo que a mummy que ela achava ser uma referência maternal, era na verdade um cadáver dissecado enfaixado. Salvou-se o sentido de humor, mesmo equivocado.
Consta que o professor Cavaco, em privado, terá uma predisposição jocosa que nunca revelou em público, certamente por receio que manchasse a sua hirta solenidade. Presumivelmente, não terá apreciado a tirada de Ana Gomes, cáustica, mas não necessariamente insultuosa. O dicionário online da Porto Editora oferece como sinónimos de múmia em sentido “figurado, pejorativo – pessoa muito magra e de pele ressequida” e também “pessoa sem ânimo ou vitalidade”. Ora, pejorativo, segundo a mesma fonte, é algo com “conotação desfavorável”, “que expressa menosprezo”, o que é diferente de uma ofensa ou de um ultraje.
O professor regressou ao ciclo noticioso com a pré-publicação no Expresso do seu novo livro, intitulado Uma Experiência de Social-democracia Moderna, uma manifestação de fé nas virtudes da social-democracia, onde assume Sá Carneiro como grande referência (e também Olof Palme). Talvez porque a “social-democracia não é susceptível de uma formulação única e simples”, Cavaco Silva tanto nota que “quer a social-democracia alemã quer a sueca rapidamente concluíram que a pureza ideológica sucumbia perante as realidades da governação” como frisa que “o exercício do poder, para Sá Carneiro não podia abdicar dos princípios da social-democracia em nome da eficácia”.
A publicação de Cavaco Silva surge poucos dias depois de André Ventura se ter apresentado como “o herdeiro humilde” de Sá Carneiro, cujos discursos passa “muitas horas a ler”. Ventura, que de “múmia paralítica” não tem nada, é herdeiro mas pouco. É que, como explicou na convenção do seu partido, “O pensamento de Sá Carneiro era para os anos 1970 e 80, o meu pensamento é para o século XXI”. O frenesim mediático e a propensão para os soundbites acabaram prejudicados por uma convenção caótica, assaltada por lunáticos e propostas aviltantes, onde a cadeira do poder foi conquistada à força da repetição de votações e de lágrimas no canto do olho.
Imagem: desciclopedia.org