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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

OS IDIOTAS

Abril 26, 2020

J.J. Faria Santos

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Dizem que o ridículo mata, mas não seguramente de forma fulminante determinadas carreiras públicas. Doutra forma, Trump e Bolsonaro seriam cadáveres políticos ou zombies putrefactos. Tempos houve em que se exigia aos estadistas o cumprimento dos serviços mínimos. Eles próprios se comprometiam com um discurso em que estivessem presentes alguma lógica e coerência, se mantivesse ausente a inverdade e a flagrante mentira e, sobretudo, abstinham-se de tergiversações que levassem a especulações sobre a sua sanidade mental ou a inadequação para o cargo que exerciam. Era o tempo em que discursos inflamados e com desprezo pelos factos não encontravam legitimidade democrática suficiente para ascender aos púlpitos do poder em países com robustas credenciais democráticas.

 

O insuperável (na idiotice, no narcisismo e na megalomania) Presidente americano surpreendeu a comunidade científica e o mundo com as suas mirabolantes propostas para combater a covid-19. Que passam por irradiar “o corpo com luz ultravioleta” (pôr “a luz dentro do corpo, o que pode ser feito através da pele ou de outra forma qualquer”), e também por injectar desinfectante nos doentes, visto que produtos como a lixívia “acabam com o vírus num minuto”. Face às reacções indignadas que as suas “propostas” causaram, Trump veio entretanto alegar que estava a ser “sarcástico”, mesmo que isso seja flagrantemente incompatível com o tom usado e com a convicção com que sugeriu aos especialistas presentes no briefing que “verificassem” ou “testassem” as hipóteses de “tratamento” avançadas por ele. John Cleese, dos inimitáveis Monty Python, já veio esclarecer que quando escrevera no Twitter que Trump tinha enlouquecido (“demente, desequilibrado, delirante, completamente chanfrado”) estava “obviamente a ser sarcástico”.

 

Já Bolsonaro decidiu poupar-nos ao espectáculo da indigência científica (para não dizer de bom senso) encenado pelo seu homónimo norte-americano, embora já tivesse arriscado proclamar a sua convicção na eficácia na hidroxicloroquina. Quanto à sua opinião em relação ao impacto da covid-19, sabemos que aquilo que começou por apelidar de “gripezinha ou resfriadinho” logo se transformou, pelas suas próprias palavras, no “maior desafio da nossa geração”. Eu diria que ele é ainda um maior desafio para toda as gerações de brasileiros que acreditam na democracia. O Messias, que se esmera no grotesco, participou numa manifestação promovida por apoiantes seus onde se defendeu uma intervenção militar no país, mas, perante a crítica generalizada, acabou por garantir “democracia e liberdade acima de tudo”. E num outro momento da sua intervenção, proclamou, majestático: “Eu sou, realmente, a Constituição”. Ou seja, é como se a Constituição, o conjunto de normas que descreve, enquadra e limita também os poderes de Bolsonaro, tivesse encarnado nele. Só quem apresenta tantos tiques totalitários e um absoluto desprezo pelas regras da democracia poderia fazer uma proclamação tão absurda. Dizem que agora a sua base de apoio está a esboroar-se e que os militares estão a tomar conta do Governo. E até Moro se demitiu, alegando interferência de Bolsonaro junto da Polícia Federal. E, ironia das ironias, fez questão de frisar que os governos do PT nunca exerceram qualquer tipo de interferência deste teor. O justiceiro do ego inflado, dos meios questionáveis e dos fins obscuros demitiu-se da Justiça porque percebeu que estava em má companhia, demonstrando um discernimento lamentavelmente tardio. Esperemos que, como forma de redenção, tenha dado o tiro de partida para o impeachment. Pode ser que a remoção dos idiotas de cargos de poder se faça afinal, não por eles comprovadamente representarem um perigo para a democracia, mas sim por constituírem uma ameaça à saúde pública.

 

Imagem: Plavonk em imgflip.com

POESIA CONTRA A PANDEMIA (EXCERTOS)

Abril 20, 2020

J.J. Faria Santos

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“Porque não me telefonaste,

perguntou o rapaz à rapariga.

Ontem à noite, fiquei à espera. E agora,

já não sei se hei-de continuar a pensar

em ti ou a esquecer-te. O amor,

pássaro medroso, bate as asas

lentamente, sem muita convicção.”

         João Camilo – Um filme desconexo

 

“Viver condor

(transferência de um estado doloroso

Para o nome de uma ave de rapina),

Pôr o amor à distância?

(…) Só a distância é que nos salva?”

         António Barahona – Poema de desencanto e de combate

 

“A cidade desagrega-se docemente,

mal iluminada – tudo molhado, escuro,

escorregadio – e eu continuo de pé.

Tantas solidões insaciáveis certamente

acabarão por se cruzar nalgum ponto.”

         Diogo Vaz Pinto – Deixa-me apenas isto, beber a penumbra

 

“Pouco importa que tenha chegado a aurora

aos bares que cumprem horário nocturno

e o cheiro dos desinfectantes mostre

como se apagam

os vestígios do amor”

         José Tolentino Mendonça – Patti Smith explica o Cântico dos Cânticos

 

“não entrei na casa,

não tinha as mãos lavadas

para bater à porta.

ao fundo do jardim,

perto de quatro paredes de guardar o Céu,

um anjo jazia com pouco respirar.”

         Emanuel Jorge Botelho – Esboços de iluminura

 

“Tenho tristezas como toda a gente.

E como toda a gente quero alegria.

Mas hoje sou de um céu que tem gaivotas,

leve o diabo essa morte dia a dia.”

         Eugénio de Andrade – Com as gaivotas

 

“Eu já nem sei o que tenho

se febre se mal ruim

se este sentimento estranho

de não ser de aonde venho

comigo longe de mim.”

         António Lobo Antunes – Vodka & Valium (rumba)

 

“Ficávamos no quarto, onde por vezes

o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior

paixão que pelo coração se chega à pele.

Não há então entre eles nenhum desnível.”

         Luís Miguel Nava – Paixão

 

“Quando a noite chega o maravilhoso não escurece.”

         Gonçalo M. Tavares – Quando a noite chega o maravilhoso não escurece

 

Imagem: Second Story Sunlight, quadro de Edward Hopper

                      (Courtesy of Bert Christensen)

UM OUTRO CARNAVAL NA PÁSCOA

Abril 12, 2020

J.J. Faria Santos

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O Carnaval já passou e não paramos de falar em máscaras. Desfilamos em casa, onde estamos sequestrados, ou em expedições furtivas pelas ruas, em busca de bens de primeira necessidade ou em arremedos de jogging ou ciclismo. Fazemos cursos acelerados de introdução à epidemiologia, familiarizamo-nos com palavras como “gotículas”, “aerossóis”, “incubação” e “imunização”. Aprendemos a reproduzir expressões associadas à análise de gráficos (curva, planalto) que atribuíamos apenas à orografia. E se a fé move montanhas, à medida que a altitude aumenta mais escasseia o oxigénio. E como neste Carnaval não queremos brincar ao alpinismo, celebramos o planalto que parece alisar a curva e nos alimenta a esperança de que o pico já lá vai.

Como nos corsos tradicionais, as fatiotas de enfermeira e médico estão em alta. Só que, nesta inesperada recriação, não se trata de foliões, mas sim de empenhados salva-vidas. E mesmo sem desfilarem em carros ornamentados pelas ruas agora desertas, são aplaudidos nas varandas e nos terraços. Porque sabemos que iludem as probabilidades, desafiam a estatística e espantam até ao limite a fatalidade. E nós, resignados a uma resistência passiva, aconselhados a enveredar por uma táctica que combina a retirada com uma acção retardadora, olhamos para os números com uma desolada impotência. Todavia, acreditamos. Separados, mas não isolados; solitários, mas não abandonados. Acreditamos que este Carnaval sinistro e soturno acabará por dar lugar a uma Páscoa (palavra de origem hebraica que significa passagem) revitalizadora, a um surto epidémico de crença numa vida reinventada.

 

Imagem: Wikimedia Commons

BIBLIOTERAPIA (E UMA ESPERANÇA EM FORMA DE HASHTAG)

Abril 06, 2020

J.J. Faria Santos

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Ler faz-nos mais felizes? A newsletter do editor da New Yorker, David Remnick, que deu entrada na minha caixa de correio electrónico sob o título A crise do coronavírus: “Tenho estado mais assustado com isto do que estive com o 11 de Setembro.”, estava organizada por tópicos, o último dos quais intitulado Departamento das Distracções. Neste, a primeira proposta de leitura apontava para um artigo da escritora Ceridwen Dovey (Can Reading Make You Happier?) acerca da sua experiência e dos méritos da biblioterapia.

Dovey, antes mesmo de clarificar o conceito (“designação lata para a prática ancestral de encorajar a leitura para efeitos terapêuticos”), faz questão de explicar que sempre reagiu com certa cautela ao que ela chama de “evangelismo peculiar de certos leitores”, que nada mais é que o hábito de nos recomendarem livros com um “brilho beatífico no olhar”, na ilusão de nos entregarem um tesouro com remédios infalíveis ou deleites indescritíveis, como se, frisa ela, “os livros não tivessem diferentes significados para cada pessoa – ou até diferentes significados para a mesma pessoa – em variados períodos das suas vidas.” Não posso concordar mais, de tal forma que eu, que tenho o hábito de sublinhar a lápis determinadas passagens dos livros (prática nada original, aliás…) – ou porque adquirem especial significado para mim ou porque o brilhantismo da formulação ilumina o talento do autor – , dou por mim mais tarde, quando faço uma releitura, a tentar perceber o que me motivara a reparar em determinada frase ou expressão.

A autora, que experimentou a biblioterapia, explica-nos que o método de tratamento remonta à Grécia Antiga, onde, na biblioteca de Tebas, se podia ler a inscrição “local de cura para a alma”, e ainda que no final do século XIX Freud usou a literatura nas suas sessões de psicanálise. E destaca um estudo de 2011, publicado no Annual Review of Psychology, onde se conclui que quando as pessoas lêem algo sobre uma dada experiência, ocorre uma estimulação das “mesmas regiões neurológicas tal como se estivessem elas próprias a passar pela experiência”. Portanto, pode dizer-se que a tão glosada noção de que ao ler literatura de viagem se pode viajar sem sair de casa é mais do que um produto da imaginação…

Ceridwen Dovey enumera os benefícios para a saúde que a leitura proporciona. Diz-nos que ela nos induz um estado de transe semelhante à meditação, e que os leitores regulares “dormem melhor, têm níveis mais reduzidos de stress, maior auto-estima e taxas mais baixas de depressão”. Confesso algum cepticismo em relação a alguns destes efeitos, mas, para ser justo, Dovey também cita testemunhos doutro teor, como o de Suzanne Keen, que no seu livro de 2007 A Empatia e o Romance notou que “os leitores também podem ser anti-sociais e indolentes. A leitura de romances não é um desporto de equipa.”

Neste artigo de Junho de 2015 que o editor da New Yorker decidiu recuperar como sugestão de leitura sobre a leitura, Dovey cita um ensaio de Marcel Proust que parece adequar-se (também) a este tempo de isolamento social. “Com os livros não há sociabilidade forçada. Se passamos a noite com esses amigos – os livros – é porque realmente o queremos”, escreveu Proust. É um testemunho de amizade indestrutível, que, evidentemente, não substitui os laços que se estabelecem entre seres humanos.

Quanto à minha experiência pessoal, actual, agora que os primeiros sinais de esperança coexistem com os primeiros indícios de saturação causados pelo recolhimento domiciliário, a leitura de A Peste de Albert Camus estimula-me a reflexão sem me provocar insónias. Escreveu Camus lá mais para o fim do romance: “Era preciso esperar ainda. Porém, à força de esperar, não se espera já, e a nossa cidade inteira vivia sem futuro.” Para alimentar a vontade de futuro, temos de continuar a mobilizar-nos enquanto comunidade, revivificar o nosso sentido de humanidade. Enquanto termino a leitura de Camus, tenho Evelyn Waugh em lista de espera. De Reviver o Passado em Brideshead, recordo a série televisiva, que via com o meu avô. O mesmo avô com quem ia colher amoras silvestres, com as quais fazia um delicioso sumo. Biblioterapia é capaz de ser também isto: a partir de uma dada leitura, deixar fluir a memória e o pensamento, revitalizar todo um património de afectos e solidariedade, redescobrir o prazer de viver em tempos desafiantes. Tempos em que sabemos que não vamos todos ficar bem, mas não desistimos de tentar tornar realidade uma esperança em forma de hashtag.

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