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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

FRASES À PROCURA DE AUTOR (EDIÇÃO COVID-19)

Março 30, 2020

J.J. Faria Santos

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  1. “Jair Bolsonaro não é um canalha acidental. A ausência dos mais leves vestígios de integridade moral constitui a essência da sua personalidade, tal como ela publicamente sempre se manifestou. (…) não pode causar espanto a forma como Bolsonaro tem gerido internamente a dramática crise sanitária que se abateu sobre o planeta. (…) O seu comportamento é imperdoável – considero-o equiparável ao de alguns criminosos de guerra que acabaram por cair na alçada da jurisdição penal internacional.”

       a) Lula da Silva     b) Francisco Assis     c) Gregório Duvivier

 

 

  1. “Confinados a um isolamento compreendemos talvez melhor o que significa ser – e ser de forma radical – uma comunidade. A nossa vida não depende apenas de nós e das nossas escolhas: todos estamos nas mãos uns dos outros, todos experimentamos como é vital esta interdependência, esta trama feita de reconhecimento e de dom, de respeito e solidariedade, de autonomia e relação.”

       a)José Tolentino Mendonça     b) Paulo Tunhas     c) Eduardo Lourenço

 

 

  1. “O contágio vem inopinadamente, violentamente e ao acaso. Qualquer um, estrangeiro ou familiar, pode infectar-nos. O acaso e o contacto passam a ser perigo e a ocasião de morte possível, e todo o encontro, um mau encontro. Neste sentido, o outro é o mal radical"

        a) João Miguel Tavares     b) José Gil     c)Desidério Murcho

 

 

  1. “Não, não é aceitável que o Presidente da República finja que se esqueceu de tudo quanto escreveu sobre direito constitucional democrático (…) e banalize o recurso ao estado de emergência (…) Quando o número de casos continuar a subir (como sobe em Itália desde que se impuseram as medidas de restrição absoluta à mobilidade, ao mesmo ritmo que subia sem elas), não percebeu ele que o partido do pânico clamará que ‘isto não está a funcionar!’ e vai pedir que se parem transportes públicos, se fechem fábricas, se imponha o recolher obrigatório, se limite a uma hora por dia a saída de casa? Cedeu-se ao pânico uma vez, ceder-se-á sempre…”                                              

        a) António Barreto     b) Ana Gomes     c) Manuel Loff

 

  1. “Impacientes do presente, inimigos do passado e privados do futuro, parecíamo-nos assim bastante com aqueles que a justiça ou o ódio humano fazem viver atrás das grades. (…) Porém, se era o exílio, na maior parte dos casos, era o exílio em casa.”

       a) Albert Camus     b)Michel Houellebecq     c)Leila Slimani

 

 

  1. “Há uma diferença gigantesca entre apelar à prudência e inteligência da população e desatar a pôr o país inteiro em polvorosa, como se estivéssemos na antecâmara do apocalipse. Calma. O país estava (e está) manifestamente impreparado para combater o coronavírus, e ele irá causar muitos milhares de mortos. (…) Seria óptimo que a autorização que concedemos ao Governo para agir à bruta e meter toda a gente dentro de casa fosse a solução para todos os males. Não é.”

       a) João Miguel Tavares     b) Henrique Raposo     c) Zita Seabra

 

 

  1. “Todos estes médicos perguntaram: ‘Como percebe tanto deste assunto?’ [covid-19]. Talvez eu tenha uma capacidade inata. Talvez devesse ter feito isto, em vez de ter concorrido a Presidente.”

       a) Marcelo R. Sousa     b) Jair Bolsonaro     c) Donald Trump

 

  1. “A quarentena e o confinamento são essenciais para parar a progressão das epidemias. (…) Para derrotar uma epidemia, as pessoas precisam de confiar nos especialistas, os cidadãos precisam de confiar nas autoridades, e os países precisam de confiar uns nos outros. Ao longo dos últimos anos, políticos irresponsáveis minaram deliberadamente a confiança na ciência, nas autoridades públicas e na cooperação internacional. Em resultado disto, enfrentamos agora esta crise privados de líderes globais que inspirem, organizem e financiem uma resposta global coordenada.”

         a) Timothy G. Ash     b)Yuval N. Harari     c) Martin Amis

 

SOLUÇÕES: 1-b) in Público de 28/03/2020; 2-a) in Expresso-Revista de 21/03/2020; 3-b) in Público de 16/03/2020; 4-c) in Público de 18/03/2020; 5-a) in A Peste; 6-a) in Público de 19/03/2020; 7-c) in SIC Notícias em 22/03/20; 8-b) in Time Vol.195 – nº11

 

Imagem: visao.sapo.pt

O ESPECULADOR, OS IMORAIS E O GATO CONSELHEIRO

Março 23, 2020

J.J. Faria Santos

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“Os meus preços são especulativos, não vou esconder. São pacotes de 12 unidades e cada uma custa 8,75 euros”, diz o empresário de material médico sedeado em Sintra ao Expresso. E por que razão haveria de “esconder”? Quiçá, por decência, honestidade, profissionalismo? O certo é que por algo que vendia por sessenta e cinco cêntimos, tem agora quem “ofereça 12 euros por máscara”. Na senda da doutrina Teresa Guilherme, que postula que “quem tem ética passa fome”, o empreendedor diz-se de “consciência tranquila” porque “é assim que o mercado está”. Um mercado que, por acréscimo, ele distorce ainda mais com a sua actividade paralela (nada factura e recebe apenas em dinheiro vivo). Um mercado que, apesar de todas as suas limitações, não merece ser pretexto para indignidades deste teor. A solidariedade comunitária e o comportamento cívico da generalidade dos portugueses perante a epidemia da covid-19 tornam ainda mais execrável esta exibição de ganância e torpeza moral.

 

Repete-se em artigos de opinião, editoriais e análises que é em tempos de grande provação que se vê a fibra dos líderes. Que os medianos ou os anódinos ascendem a alguma forma de grandeza. Por outro lado, parece seguro concluir que os líderes já desqualificados pela sua acção política e pela sua retórica pejada de meias-verdades e flagrantes falsidades prosseguem imperturbáveis no caminho do descrédito. Bolsonaro, por exemplo, aconselhado a permanecer em quarentena pelo seu ministro da Saúde, não se refreou de cumprimentar manifestantes (numa acção convocada a favor do regresso da ditadura militar) e tirar selfies com telemóveis que não o seu. Quanto a Trump, chegou a declarar, taxativamente, que os EUA tinham “controlo total sobre a situação” momentos antes do director do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas ter admitido a possibilidade de mais de dois milhões de americanos morrerem em consequência do coronavírus. Já para não falar da tentativa canhestra e indigna de qualquer estadista que se preze de obter o monopólio da vacina que está a ser desenvolvida por cientistas alemães. Como explicou Masha Gessen na New Yorker, “Donald Trump tem um reportório limitado. Quando se trata de governar, utiliza cinco expedientes: encena gestos heróicos, utiliza a ofuscação e a mentira, recorre ao auto-elogio, alimenta o medo e faz ameaças.” O que torna tudo tão perigoso é que, como Gessen faz notar, “uma população tomada pelo terror oferece extraordinárias oportunidades a este presidente que tem vindo a apalpar o terreno do poder autocrático”. Quando não se sabe em quem se acreditar e “os factos baseados na realidade são aterrorizantes”, a tendência é para seguir o líder, o comandante supremo (neste caso, na expressão satírica de Masha Gessen, o aldrabão supremo – conman-in-chief).

 

Nikki Palumbo, na New Yorker online, tornou-se porta-voz do seu animal doméstico, apresentando-nos umas divertidas Dicas de Quarentena do Meu Gato, divididas em nove tópicos. Descanse em abundância (“Durma em qualquer lado, na cama ou debaixo da cama, num local soalheiro, debaixo das mantas, à janela…”); mantenha-se activo (“Persiga a sua própria cauda, esparrame-se em cima de um grande livro…”); tome banho regularmente; fale com os amigos e com a família; mantenha uma dieta equilibrada (“Faça pequenas refeições, de três a catorze vezes por dia…”); hidrate-se; crie um projecto; medite (“Olhe fixamente para um ponto na parede ou no tecto durante seis minutos”); e pratique o distanciamento social (“Afaste-se dos humanos. Bufe se necessário for.”)

 

Imagem: Cristina Sampaio para o jornal Público

O CONSUMO NOS TEMPOS DE CORONAVÍRUS

Março 15, 2020

J.J. Faria Santos

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Primeira paragem. Noto uma anormal abundância de lugares para estacionamento, que logo percebo dever-se à suspensão de uma feira que costuma realizar-se nas imediações. A minha satisfação acaba por esmorecer devido a uma circunstância incomum: uma fila de clientes com carros de compras vazios especados em frente da entrada. Faço inversão de marcha e dirijo-me para a saída, tomando o rumo de um estabelecimento da concorrência, que fica localizado a cerca de 2 km.

 

Segunda paragem. Verifico uma quantidade de carros superior ao habitual, mas em contrapartida não parece existir restrições à entrada. Entro com o carro de compras e noto de imediato que as pessoas aglomeradas na zona das caixas estão demasiado próximas. Tenho uma lista mental de produtos a adquirir. A ideia é circular pelos corredores e retirá-los dos expositores no mínimo de tempo possível. Há prateleiras vazias, mas nada de apocalíptico. Gel com lixívia, álcool, arroz, nem vê-los. Há alguma razia na zona dos enlatados. Estaciono, por fim, junto à caixa a uma distância razoável da cliente que me precede com um carro a abarrotar. Enquanto espero, observo casualmente o comportamento dos outros. Há uma idosa, numa outra caixa, que retira do bolso um lenço de papel amarrotado, que desembrulha e leva ao nariz, para de seguida o tornar a embrulhar e acondicionar no bolso. Fora do supermercado, na zona de shopping, relativamente isolado, está um pai extremoso que retira um bebé do carrinho e ergue-o no ar celebrando as alegrias da paternidade. A menina da minha caixa aproveita uma pausa para desinfectar as mãos. Na generalidade, as pessoas, conhecidas ou desconhecidas, conversam aparentemente sem grande apreensão e sem distanciamento profiláctico. Pago e saio. Durante o tempo que cá estive não me recordo de ter visto alguém a espirrar ou a tossir. Apenas uma pessoa circulava com uma máscara.

 

Terceira paragem. Regresso ao ponto inicial. Continuam os clientes em fila irregular com os seus carrinhos de compras vazios em frente à entrada. Junto-me a eles. Mais uma vez, conversa-se animadamente. Preservo uma distância que me aparece adequada da pessoa que está à minha frente; a jovem que está atrás de mim parece-me demasiado próxima. Reparo que um papel afixado indica o número de pessoas admitidas simultaneamente: 50. Saem duas, entram duas, e assim sucessivamente num movimento controlado pela autoridade serena do segurança enluvado. Espero pouco mais de cinco minutos e, quando entro, a sensação é de conforto e segurança, mesmo que ilusória. Movo-me num estabelecimento onde o espaço pessoal está preservado, sem aglomerados opressivos dos quais não nos conseguimos afastar. Abasteço-me de pão, queijo e fiambre fatiados e coelhos e ovos de Páscoa. Passo por algumas prateleiras desfalcadas (não muitas) e olho com desdém para o papel higiénico, que me recuso a adquirir num gesto que faço equivaler a uma afirmação de civismo e de rejeição de histeria comportamental. Há um homem que desrespeita flagrantemente a “etiqueta respiratória”, tossindo alarvemente para o ar, mas nessa altura já estou na lista de espera da caixa, cuja operadora usa luvas e sorriso. As únicas máscaras que por aqui se viram foram as da inconsciência, da simpatia, da resignação, da apreensão e da esperança. A vida continua num país em desaceleração com uma epidemia a galope. Protejamo-nos para podermos proteger os outros.

 

Imagem: Wikimedia Commons

A EPIDEMIA É UM ESPELHO

Março 09, 2020

J.J. Faria Santos

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“As epidemias são o tipo de doença que parece erguer um espelho em frente dos seres humanos para nos mostrar quem realmente somos”, declarou Frank M. Snowden, professor universitário de História e História da Medicina, em entrevista à New Yorker. Claro que Snowden esclareceu que a imagem que o espelho devolve não reflecte apenas “o lado negro da humanidade”, mas também o seu “lado heróico”, considerando um bom exemplo o desempenho dos Médicos Sem Fronteiras na crise do Ébola.

Já Susan Sontag notava no seu ensaio A Sida e as Suas Metáforas que “as ideologias políticas autoritárias têm um manifesto interesse em promover o medo, um sentimento de iminência de tomada do poder por elementos estranhos – e para tal as doenças reais constituem um material muito útil”, acrescentando que “as doenças epidémicas abrem as portas aos apelos à proibição da entrada de estrangeiros, de imigrantes”. Na mesma obra, Sontag dá o exemplo da sífilis (epidemia que se espalhou pela Europa no final do século XV), para evidenciar a necessidade “de atribuir uma origem estrangeira às doenças mais temíveis. Os ingleses chamam-lhe a ‘varíola francesa’ (…); para os Parisienses era o morbus Germanicus; o mal de Nápoles, para os Florentinos; doença chinesa, para os Japoneses”. Nada original, portanto, no facto de um canal de informação português se referir à covid-19 como o “vírus chinês”.

O que fazer com o medo, então? Como responder aos desafios sociais que o coronavírus nos coloca? Aplicar aos nossos receios uma dose generosa de racionalidade e seguir os conselhos das autoridades (respeitar a etiqueta respiratória, lavar as mãos com frequência, evitar contacto próximo com pessoas com infecção respiratória). E ter a noção, citando o José Saramago do Ensaio Sobre a Cegueira, de que “as respostas não vêm sempre que são precisas, e mesmo sucede muitas vezes que ter de ficar simplesmente à espera delas é a única resposta possível”. Mas não tenhamos medo das palavras. “Distanciamento social” é simplesmente criar um espaço de resguardo que minimize o risco de contágio. O distanciamento efectivo não tem de implicar um distanciamento afectivo. Muito menos um curto-circuito na nossa humanidade.

OS POPULISTAS CONTRA O POPULAR

Março 02, 2020

J.J. Faria Santos

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Já não bastava a ameaça que o coronavírus representa para a magistratura dos afectos do Presidente da República (como reprimir a sua hipocondria? Como circular entre a multidão de fãs sem correr o riso de contágio ou potenciar a própria expansão da epidemia?), eis que agora os populistas aproveitam os diversos púlpitos para o atacar.

 

Primeiro foi o azougado André Ventura que, em registo de stand-up comedy (para usar a expressão de Bárbara Reis no Público), atirou: “Viram o Marcelo Rebelo de Sousa dizer: ‘Temos de ter cuidado com o populismo? Não quero dar exemplos desagradáveis, mas é a mesma coisa que um pedófilo dizer: ‘Cuidado com estas redes internacionais que andam a raptar crianças.’” Como se vê, Ventura utilizou um artifício de retórica para dar mesmo um “exemplo desagradável”. Figuras desta estirpe são difíceis de combater, pelo que convém mantê-los a uma certa distância higiénica, dentro dos limites da urbanidade e da convivência democrática, mas à distância. Coisa que Marcelo não fez, chegando ao ponto de, numa audiência, tecer considerações sobre a oportunidade e as desvantagens do líder do Chega se candidatar à Presidência. Ao bizarro retorno à função de analista político, acresce o evidente conflito de interesses.

 

Depois, num programa da manhã, Quintino Aires, utilizando como pretexto a análise de uma situação em que um agente da PSP foi cercado e insultado por um grupo de indivíduos após uma cerimónia fúnebre, declarou, de uma forma fulminante: “Eu não quero no meu país um Presidente que se cala perante a vergonha que aqui passamos (…) Eu não quero no meu país outra vez o Marcelo Rebelo de Sousa a ser Presidente e a agravar esta situação.” Eis o ponto em que nos encontramos: a omnipresença do mais alto magistrado da nação atingiu um tão alto grau de simbolismo que a sua ausência mediática num caso de desordem pública é pretexto para que o Professor Emérito da Universidade de Moscovo e recipiente do Prémio Copérnico 2012 lhe recuse o voto numa provável recandidatura. Talvez Marcelo ainda possa reganhar a confiança do Dr. Quintino. Não exactamente dando-lhe conselhos, mas recebendo-os. Aproveitando, porventura, uma das consultas para adultos que o psicólogo propõe. Talvez a “Consulta da Dependência Emocional”.

 

Sejamos justos. Marcelo poderá ter flirtado com esse lamaçal cor-de-rosa que é o populismo, mas nunca se deixou enterrar. Jamais caucionou a visão de, na definição de Cas Mudde, uma sociedade separada entre uma “população pura” e uma “elite corrupta”. E intimamente, até poderá reconhecer-se na opinião de Jaime Nogueira Pinto em entrevista ao Correio de Manhã em 2017, que apoiou a sua presença nas “catástrofes”, chamando-lhe um “conceito quase ‘rainha de Inglaterra’”, explicitando que “as pessoas que não gostam da popularidade dos outros chamam-lhe populismo, de forma depreciativa”.

 

Só que a popularidade é uma amante caprichosa e insaciável. Reivindica atenção permanente, e qualquer desejo recusado, por mais insensato que seja, ameaça a perenidade da relação. É por isso que, quando afastou a possibilidade de trazer para Portugal o português infectado com o coronavírus, Marcelo foi por este severamente criticado: “Foi um choque receber essa notícia. Como português gostava de ver e abraçar a minha família. Não estou a ver um bom final para esta situação, não sei se o meu estado de saúde se vai agravar, e o Presidente está-me a deixar ao abandono com essa declaração”. É no que dá armar-se em santo padroeiro dos aflitos. Agora, Marcelo vai precisar de muita paciência cristã para lidar com este concidadão que desde as longínquas paragens nipónicas foi bradando: “Presidente, Presidente, porque me abandonaste?”

 

Imagem: Meme de Alexandre Martins

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