A IRREDIMÍVEL IGNORÂNCIA DO RACISTA
Fevereiro 24, 2020
J.J. Faria Santos
Como pode, em pleno século XXI, um qualquer cidadão prescindir da racionalidade e aventar, sequer, a hipótese de a cor da pele do seu semelhante constituir um indício de menor inteligência? Longe vão os tempos em que o naturalista francês George-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788), defendia a superioridade dos europeus sobre os africanos com base em factores como o meio ambiente ou o clima. Neste contexto, defendia ele, como os europeus habitavam terras áridas, a sua inteligência era espicaçada pelas dificuldades, enquanto que os africanos beneficiados por condições favoráveis se tornavam “grandes, gordos e bem feitos, mas…simples e estúpidos”. Relíquia do passado é também a escala de raças em função de inteligência organizada pelo antropólogo e fundador da eugenia Francis Galton (1822-1911), que colocava no topo atenienses e britânicos e na cauda os africanos e os aborígenes australianos. Não obstante o esforço em sustentar as teorias de superioridade racial com o recurso a métodos mais ou menos científicos (análises sanguíneas, testes de inteligência, medição de crânios), o racismo científico foi progressivamente desacreditado.
Na verdade, citando um artigo do bioquímico David Marçal no Público, “não existem raças humanas e as presumidas diferenças entre elas – relacionadas com a inteligência ou outras capacidades cognitivas, por exemplo – não têm qualquer fundamento”. Como ele explica, o progresso tecnológico tornou comum a sequenciação de ADN antigo, permitindo um conhecimento mais aprofundado de todas as populações do mundo, sendo um dado adquirido que “todas as actuais populações são o resultado de misturas de populações altamente divergentes (muito diferentes entre si) e que já não existem na forma não misturada (…) Somos todos o resultado de misturas, em grande parte ocorridas nos últimos 5000 anos”. Tudo isto desmonta o conceito de raça que “tem subjacente a ideia de uma homogeneidade de longo prazo” e “arrasa os mitos nacionalistas apoiados em preconceitos raciais”. Claro que o descrédito dos fundamentos científicas das teorias racistas assentes nas características biológicas não impede que 52,9 % dos portugueses considerem que há “raças ou grupos étnicos que são por natureza menos inteligentes do que outros” (estudo Atitudes Sociais dos Europeus).
O racismo com base nos traços físicos ou na cor da pele, todavia, coexiste hoje com novas formas de estigmatização. Como se pode ler num estudo do Observatório das Migrações (Discursos do racismo em Portugal: essencialismo e inferiorização nas trocas coloquiais sobre categorias minoritárias): “(…) aspectos como a hereditariedade, a genética e os traços fenotípicos deixam de fundamentar o discurso sobre o Outro sociológico, dando lugar a referências como os modos de viver e de pensar, a cultura, os costumes ou os traços identitários”. É o que sucede quando encaramos a diferença, não como um convite à descoberta ou ao debate franco, mas sim como uma agressão intolerável aos nossos hábitos ou às nossas crenças mais arreigadas. Como escreve com notável lucidez Rosário Farmhouse na nota de abertura deste estudo: “Olhar os outros sem ver as pessoas e a sua inalienável dignidade humana, mas as imagens e estereótipos que gravamos na nossa mente fruto de mitos e preconceitos, acumulados muitas vezes por anos de ignorância, constitui a principal causa da discriminação.”