CLÁUDIA NO PAÍS DOS BRANDOS COSTUMES
Janeiro 27, 2020
J.J. Faria Santos
Numa sociedade democrática, é imprescindível que o monopólio do uso da força por parte das forças de segurança seja exercido de forma a garantir a ordem pública e a integridade física dos cidadãos. Mas igualmente importante é que essa actuação seja orientada por princípios de adequação, proporcionalidade e razoabilidade. E também de humanidade. O estrito cumprimento da legalidade é a base do contrato de confiança que se estabelece entre cidadãos e agentes policiais, indispensável para que se acatem ordens e se impeça a invocação de qualquer pretexto desculpabilizante de comportamentos transgressores. Episódios mal avaliados, reacções intempestivas, interpelações desajustadas, ordens prepotentes e insensatas e o uso indiscriminado e ilegal da violência constituem fonte de alarme social e justa indignação.
Cláudia Simões deu entrada no Hospital Amadora-Sintra com “um traumatismo cranioencefálico frontal e trauma facial com edema exacerbado”, apresentando a “face deformada por hematomas extensos”, segundo relatório a que o Expresso teve acesso. O jornal pediu a dois peritos forenses que analisassem o relatório. Um deles considerou que os “hematomas foram, muito provavelmente, causados por um acto violento, nomeadamente murros nos lábios e nos olhos, sendo dificilmente compatíveis com uma queda”; o outro perito considerou os dados inconclusivos, sendo qualquer um dos cenários (agressão ou queda) possíveis. Cláudia, que na sequência de uma altercação com um motorista do autocarro (que terá dito “Seus pretos, andam a estragar o nosso país”) se viu intimada pelo agente policial a sentar-se no chão (como justificar que tenha recusado aceitar que a mulher se sentasse no banco da paragem?), foi depois, em função da sua recusa, manietada da forma que o marido dela descreveu assim ( e que pode ser testemunhado em vídeo tornado público): “Ele a agarrar na cabeça, a subir em cima de uma mulher e a sentar, tipo animal” (Público). Era necessária esta acção drástica? E se a autoridade a considerava indispensável, não poderia executá-la de forma igualmente eficaz, mas menos degradante e grotesca? Um pouco mais de bom senso e firme persuasão não teria evitado a escalada? O agente foi também assistido no mesmo hospital, apresentando “múltiplos hematomas e escoriações no antebraço e mão direita”. A mulher concede que o mordeu para se proteger – “Se não o fizesse, morreria. Ele estava a sufocar-me”.
Subjugada, algemada, detida, Cláudia foi depois levada para uma viatura, onde, diz, foi barbaramente agredida. “Só me dava socos na boca e na cara, por isso tenho a boca toda rebentada. Perdi os sentidos. Dizia: “Grita agora, sua filha da puta, preta! Macacos, vocês são lixo, uma merda!”, relata. O comandante dos Bombeiros da Amadora declarou ao Público que os meios foram accionados “como queda” e que a senhora estava fora da esquadra quando lá chegaram. Em que manual de acção policial se postula que se abandone uma pessoa a precisar de assistência médica no exterior de uma esquadra? Que factor produziu aqui um curto-circuito na decência humana?
E como se não bastassem já os fortes indícios de violência policial com contornos racistas, eis que o inenarrável Sindicato Unificado da Polícia de Segurança Pública escreveu um post sugerindo que Cláudia poderia ser portadora de uma doença grave (“As melhoras ao colega e espero que as análises sejam todas negativas a doenças graves. Contudo a defesa da cidadã está a começar a ser orquestrada pelo ódiomor [?] de brancos.” É difícil exagerar a indignidade patente em toda esta formulação, onde uma cidadã portuguesa e angolana parece ser implicitamente descrita como potencial portadora de um agente patogénico. De facto, o vírus da intolerância, do racismo e da xenofobia mora noutro corpo e noutro espírito. E logo em entidades cujo espírito de corpo deveria estar ao serviço da comunidade e de valores éticos inatacáveis, em vez de alimentar o corporativismo e noções distorcidas de patriotismo e, pior, servir ao mesmo tempo de escudo e amplificador de comportamentos em relação aos quais só poderemos dizer: basta! Porque são uma vergonha.
Cláudia Simões pode ter entrado em altercação com um motorista de autocarro, recusado obedecer a ordens policiais e reagido ao ser manietada de modo brutal (sujeita à chamada técnica de mata-leão), mas nada disto justifica as agressões verbais e, sobretudo, físicas que terá sofrido. Aguardemos o inquérito da IGAI, enquanto nos debatemos com a incredulidade face à alegação de que Cláudia terá sofrido uma “queda” ou ter-se-á “atirado para o chão”. Estão em causa os direitos dos cidadãos, a credibilidade das instituições e o bom nome do Estado de direito.