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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

CHEGA PARA LÁ, ANDRÉ!

Novembro 26, 2019

J.J. Faria Santos

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E se o apoio militante que o deputado André Ventura devota às causas e às reivindicações das forças policiais tivesse como leitmotiv não exactamente a avaliação da sua justeza e pertinência mas sobretudo uma motivação muito pessoal, alicerçada em episódios traumáticos do seu quotidiano? É que, conforme confessou em entrevista ao Sol, já foi assaltado na Baixa de Lisboa, onde “estava numa esplanada, com a carteira em cima da mesa, e vieram umas romenas” que a pretexto de lhe pedirem indicações geográficas lha surripiaram. (Passemos à frente da incoerência do campeão das tiradas securitárias deixar a carteira à mão de semear e da ironia de não ter visto nas “romenas” uma potencial ameaça num país com “uma insegurança crónica”.) E desde que abraçou a carreira de comentador desportivo foi confrontado com “muita agressividade, ofensas, insultos e ameaças de morte”, o que se agravou com a entrada na política. Não vai a “centros comerciais”, onde é “insultado”. Evita restaurantes por causa das “más experiências” e saídas à noite em Lisboa que tendem a correr mal. Como mal correram pretéritas idas a supermercados. Será assim tão surpreendente que o homem só se sinta bem (e seguro) rodeado de forças policiais?

 

Claro que há o “pequeno” engulho da sua tese de doutoramento na Universidade de Cork, aquela onde ele se mostra apreensivo com “poderes policiais” que “envolvem uma constante degradação dos direitos fundamentais no que diz respeito a aspectos criminais”, censura a “estigmatização das minorias” e o excesso de detenções sem prova. Mas como ele já explicou, com fulgurante sapiência, a tese é “ciência” que não deve ser confundida com opinião. Nem com a “percepção real” da insegurança. E como ele, pessoalmente, percepcionou a insegurança na sua vida quotidiana, a sua opinião vociferante expulsou a “ciência” para os confins do Universo.

 

André Ventura fez, citando Nuno Ribeiro no Público, “o seu primeiro comício a céu aberto, com o à-vontade de quem falava aos seus”. Envergou a camisola (literalmente) de um movimento sindical e apropriou-se do seu protesto. Terá sido o momento em que o grau zero da ética política de Ventura coincidiu com a sua entronização como ícone dos elementos do Movimento Zero (“André Ventura recebido em êxtase pelos manifestantes” proclama o site do Chega! Êxtase? Como uma adoração mística ao santo padroeiro dos polícias?), cavando a dissensão no movimento sindical e dando um golpe na credibilidade de uma agenda reivindicativa que não pode ficar refém do extremismo ou de interesses políticos.

 

A dada altura da entrevista ao Sol, quando se referia às ameaças e aos insultos, Ventura confessou: “não sou hipócrita, eu sabia perfeitamente naquilo que me estava a meter”. Ele não é hipócrita e nós não somos ingénuos. É por isso que, respeitando a sua condição de deputado eleito e o seu direito à intervenção pública, preferimos manter uma distância higiénica da sua retórica e do seu estilo. Chega para lá, André! É que a manipulação da realidade, o discurso dúplice, o aproveitamento demagógico do medo e a instrumentalização de reivindicações legítimas é que são “uma vergonha”.

A PROCURADORA DESAPARECIDA

Novembro 19, 2019

J.J. Faria Santos

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A Procuradora desapareceu dos ecrãs. Queixou-se em entrevista do facto da SIC lhe ter consignado inicialmente 18 minutos para acabar com 8. Foi-lhe proposto um formato de entrevista que ela recusou. Preferiu afastar-se. Porquê? Porque ninguém ia “aceitar ser entrevistado” por ela, “só personalidades de terceira e quarta categoria”. A intrépida Procuradora não resistiu a alimentar uma teoria da conspiração: “receberam muitas pressões para me afastar”. A estação televisiva considera a existência de pressões uma “fantasia”.

No perfil profissional de Manuela Moura Guedes a coragem e a incisividade estiveram quase sempre acompanhados pela petulância e pela insolência. O que não seria demasiado perturbador se subjacente às suas peças jornalísticas não estivessem, muitas vezes, a superficialidade e a postura militante que dinamitavam a neutralidade e amalgamavam factos e opiniões. O que contribuía para a sua descredibilização mesmo quando poderia estar no rumo certo. Era como se para divulgar informações e, sobretudo, enunciar presunções e emitir julgamentos lhe bastasse um feeling baseado na sua experiência jornalística e no conhecimento dos bastidores do poder. E por isso, a sua agressividade (muitas vezes a roçar a má-criação) pode também ser entendida como um sintoma de insegurança. E a alusão a pressões, genérica e infundamentada, um recurso típico ao populismo: a justiceira injustiçada a ser vítima dos protectores dos poderosos.

Um trabalho desenvolvido no âmbito de um Mestrado em Ciências da Comunicação da Universidade do Minho (Limites, neutralidade e troca de papéis na entrevista televisiva) fez uma análise à entrevista conduzida pela jornalista a Marinho Pinto, em Maio de 2009, no Jornal Nacional da TVI. A reacção enérgica de Marinho Pinto levou os autores a considerarem que este se “apropriou” do “poder legítimo da jornalista”, e que esta a dado momento perdeu “o controlo sobre a condução da entrevista”. E relatam a forma como ela desviou “o olhar da câmara e do entrevistado, agarrando-se às notas” que tinha na secretária. Tendo começado por realçar que “é expectável que a postura do jornalista seja de mediação (neutro, exigente, mas implacável), mais incisivo e impertinente do que complacente”, os autores concluíram que neste caso Manuela Moura Guedes acabou por “converter a entrevista num debate”, tendo ocorrido “um desvio da posição neutral” que conduziu “a um claro choque frontal entre a postura da jornalista e as determinações inscritas no Estatuto do Jornalista e no Código Deontológico da profissão”. E acrescentam que este género de episódio televisivo se enquadra na chamada informação-espectáculo.

Poderíamos desvalorizar esta heterodoxia em relação à prática jornalística corrente se o resultado dessa opção fosse o esclarecimento dos factos e o rigor e a probidade na inquirição. Mas o apetite que Moura Guedes revela pelo confronto e pelo julgamento parece ser demasiado sôfrego para se deter perante a insuficiência de dados disponíveis ou pela sua ambiguidade. Estabelecida a sua verdade, parte para a hostilidade aberta para com o entrevistado. Mas se este riposta, com a capacidade retórica e/ou com a indignação dos rectos, a Procuradora sente-se posta em causa, vilipendiada, perseguida. Como se estivesse livre de escrutínio, imune à crítica, alcandorada ao Olimpo do jornalismo agressivo que denuncia corruptos, pedófilos e toda a sorte de monstros, firmemente encavalitada na sua apregoada “independência”, ungida como Procuradora do Povo e dotada de infalibilidade papal.

 

“Limites, neutralidade e troca de papéis na entrevista televisiva – A entrevista de Manuela Moura Guedes a António Marinho Pinto no Jornal Nacional de Sexta, TVI (22 de Maio de 2009)” por Ana Isabel Gomes Melro, Helena Filipa Carvalho, Mariana Lameiras de Sousa e Vítor de Sousa (revista Comunicação e Sociedade)

Imagem: Instagram de Manuela Moura Guedes

MANUEL, ANDRÉ, JOACINE

Novembro 12, 2019

J.J. Faria Santos

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Saudoso do esplendor perdido de Portugal, o jovem Manuel Bourbon Ribeiro escreveu, via Observador, uma carta em tom lamentoso ao seu “querido” país, a quem ora pede que ajude a sua geração a ter uma “educação que (…) permita sonhar”, ora censura por “cortar as pernas à iniciativa privada”, a quem sobrecarrega de impostos. Com o voluntarismo e as certezas inabaláveis dos seus ternos 17 anos, o Manuel enumera na sua missiva todo um programa ideológico conservador nos costumes – deplora que o seu “querido” país promova “a ausência de diferenças entre raparigas e rapazes”, “acabe” com a vida dos doentes terminais e não defenda a vida humana. Infelizmente, o facto de ser estudante de Direito não evitou que resvalasse para o populismo mais básico e a generalização mais abusiva, quando afirmou que “hoje quem governa, ou suborna ou vai para a prisão”. Nem o inibiu de cometer o erro crasso de considerar que o seu “querido” Portugal não fez “a vontade ao povo”, porque “quem governou durante 4 anos nem sequer ganhou as eleições”. Saúde-se a vontade de intervenção cívica numa epístola claramente condicionada por uma visão parcelar e pouco maturada de um país que já não é “tão grande como outrora”. Tanto apego ao passado em quem tem tanta sede de futuro. E que diria ele se o país não lhe fosse tão “querido”?

 

Um notável trabalho jornalístico de Fernanda Câncio para o Diário de Notícias permitiu expor as contradições flagrantes entre a tese de doutoramento de André Ventura e o seu discurso político. No trabalho académico, por exemplo, Ventura censurou a estigmatização dos muçulmanos quando são “associados de modo superficial ao terrorismo”, considerou Portugal “um dos países mais pacíficos do mundo” e criticou os políticos que “se aproveitam (…) da generalizada vontade de punição do público”. Confrontado pela jornalista, Ventura defendeu o facto do programa do Chega aludir à “insegurança crónica” de Portugal como sendo uma “percepção” que ele e os cidadãos têm. Portanto, os dados dos relatórios fariam parte da “análise científica”, sendo que ao líder político parece competir reforçar estereótipos e percepções erróneas. O mais irónico é que Ventura cai involuntariamente no auto-retrato quando afirma a Câncio que “um populista é alguém que usa de forma abusiva os anseios de uma população para manipular as suas aspirações e para conseguir triunfar”. O que noutras circunstâncias seria mais do que suficiente para descredibilizar um político é, neste caso, perfeitamente irrelevante. O seu nicho de eleitorado, o seu núcleo duro, vai continuar a aplaudir as suas vociferações. Já será bom se o debate político e trabalhos jornalísticos como o de Câncio servirem para conter o populista demagogo, para o remeter à condição de ídolo dos profissionais da indignação e dos que privilegiam a reacção à reflexão.

 

A “indústria” das petições é algo que me diverte, quando não me repugna. Que mais de 22 000 pessoas tenham apoiado e assinado uma petição a favor do “Impedimento de tomada de posse da Impatriota Joacine Katar Moreira”, a pretexto de uma fundamentação absurda e disparatada, é surpreendente e lamentável. Como o é que as pessoas dediquem a sua energia a manifestações de ódio irracional. A deputada do Livre vem acrescentar representatividade e diversidade ao Parlamento Português e é salutar que apresente e defenda as suas causas. Do mesmo modo, é expectável que seja confrontada com as suas ideias e as do partido que representa. A campanha de desinformação de que foi alvo poderá ter como consequência uma reacção mais epidérmica e menos ponderada à crítica legítima. É por isso que a maneira como Joacine encarou as críticas de Daniel Oliveira (que entre outras coisas censurou a conversão do Livre à “agenda identitária”) não foi particularmente feliz. E a forma como admoestou a jornalista que a entrevistou para o Expresso, e que a inquiriu se não teria exagerado ao associar Oliveira à direita e à extrema-direita (“Ainda vai insistir nisto? Não me irrite, a sério. Não insista.”), mostra melindre em vez de disponibilidade para o debate. Melhor seria que reservasse a animosidade e a acutilância para os desqualificados que brandiram contra ela a arma da mentira e para os adversários políticos, em vez de se barricar no ressentimento contra quem, como Daniel Oliveira, não deixou de salientar que ela foi “atacada de forma abjecta”.

A PENSAR É QUE A GENTE SE ENTENDE

Novembro 05, 2019

J.J. Faria Santos

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O mundo em que vivemos incita-nos a comentar, intervir, promover produtos, acções e ideias na esfera pública. Em permanência. De tal maneira que parece uma forma de abstenção cívica e social não comentar a gaguez de Joacine e a saia do seu assessor, o caso da freira de um mosteiro italiano que foi ao médico com queixas de dor de estômago e descobriu que estava grávida ou o pouco subtil paralelo estabelecido por Nuno Melo entre Marcelo e André Ventura, pelo facto de ambos terem sido eleitos após anos de comentário televisivo. Por vezes, parece-me que toda a gente tem algo de relevante a acrescentar ou pelo menos sente a necessidade de marcar presença. Serei o único a ter a percepção de que se determinado assunto foi devidamente esclarecido e escalpelizado, sujeito a contraditório e debate, a minha opinião pode ser dispensável ou supérflua?

 

Javier Marías escreveu em Coração tão branco que “(..) é tão fácil não responder ao que não se deseja com quem comenta tudo e fala sem parar, as palavras sobrepõem-se e as ideias acabam por se perder, embora às vezes, se se insistir, regressem”. Sim, a nossa intervenção nas redes sociais e no espaço público em geral deveria ter sempre as ideias como ponto de partida. De preferência reflectidas e maturadas. E deveríamos fazer um esforço para evitarmos as afirmações definitivas, as condenações sem apelo, o atoleiro em que se transforma a indignação quando decisões complexas ou atitudes irreflectidas mas irremediavelmente humanas são impiedosamente censuradas com a facilidade de um teclar numa caixa de comentários.

 

Javier Marías escreveu também que “as coisas difíceis parecem possíveis depois de pensarmos um pouco sobre elas, mas tornam-se impossíveis se pensarmos de mais”. É uma frase que, se à primeira vista, parece associar o excesso de reflexão à passividade e à desistência, pode igualmente ser entendida como um aviso contra o voluntarismo e a impulsividade. Não devemos ter medo de encarar desafios difíceis, mas também não devemos recear o acto de pensar, sobretudo se ele servir para refrear os nossos instintos mais primários.

 

(Coração tão branco de Javier Marías tem edição da Alfaguara e tradução de Fátima Alice Rocha)

Imagem: Wikimedia Commons

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