O LIVRO E O LIVRE - DA FICÇÃO À REALIDADE
Outubro 29, 2019
J.J. Faria Santos
Na vida real, quotidiana, volta e meia o tema da apropriação cultural desencadeia polémica, criando uma vaga de indignações do dia. Ora porque uma ministra sueca usou um penteado com rastas, ora porque Carolina Herrera desenvolveu uma colecção inspirada em tecidos típicos de tribos indígenas mexicanas, ora ainda porque um casal de judeus americanos administra um restaurante de comida chinesa com ingredientes saudáveis.
E na ficção? Pode ou deve, por exemplo, um autor do sexo masculino colocar-se na pele de uma mulher e adoptar uma narração na primeira pessoa, intuindo e interpretando sensações e sentimentos? E pode isso ser considerado uma apropriação, ou mesmo que seja considerado um esforço de empatia ou até uma homenagem ficará sempre aquém, porque a identificação será sempre incompleta? Tratar-se-á em todo o caso de uma simulação ou de uma caricatura, com as insuficiências inerentes?
Num excelente ensaio (Fascinated to Presume: In Defense of Fiction) para a New York Review of Books (disponível online), Zadie Smith começa por fazer notar que existe uma hipersensibilidade em relação à linguagem porque ela é algo que possuímos intrinsecamente (“nas nossas bocas e nas nossas cabeças”), tornando-se um “campo de batalha conveniente”, por comparação com questões como a reforma da justiça criminal ou as políticas migratórias, para acabar por rejeitar peremptoriamente que só possamos escrever acerca de alguém que seja “fundamentalmente como nós”, pelo que apenas “uma íntima ligação autoral autobiográfica poderia ser a base legítima da ficção”. Para ela, aliás, isto seria a própria negação da ficção, visto que a noção de que só os que são como nós nos podem compreender depende de conceitos como a “visibilidade e a legibilidade” (podemos apreender o outro pelo que vemos e pelo que ouvimos), quando a própria ficção não se contenta com o que as pessoas escolhem dizer ou exibir.
Zadie Smith, que vê os escritores como pessoas com uma elevada dose de “curiosidade imprópria acerca da vida dos outros”, explica que “a identidade, as sensibilidades e os sentimentos do leitor poderão nunca via a ser compreendidos, controlados ou pré-determinados”, pelo que a ideia de que uma dada obra irá tocar um grupo específico de leitores, em particular ou predominantemente, poderá ser sabotada pela enorme variedade de experiências e identidades. O que significa que o escritor jamais conseguirá apropriar-se do leitor.
Fazendo uma comparação com a ambição de conhecimento das grandes empresas tecnológicas, que na prática funcionam como grandes colectores de dados, Smith relata que ao contrário dos algoritmos que permitem uma metamorfose da informação que se vai adaptando aos nossos gostos e se esmera em confirmar as nossas percepções e os nossos preconceitos, “em frente de um livro continuamos a ser livres”. Ele pode aspirar a mudar o nosso comportamento, mas não tem forma de saber se foi bem-sucedido.
Entre o leitor e livro, defende Smith, “existe apenas o risco contínuo do erro”, tal e qual como na vida, onde a ficção prevalece na forma como tentamos interpretar os outros, perceber os seus pensamentos e as suas inclinações. “Sem a aptidão de pelo menos adivinhar o que o outro poderá estar a pensar, não teríamos vida social. Uma das coisas que a ficção fez foi tornar este processo explícito – visível”.