O REGRESSO DO INTRIGUISTA-MOR (TANCOS REDUX)
Setembro 29, 2019
J.J. Faria Santos
“Vais ver que o papagaio-mor não vai falar sobre Tancos tão cedo. O papagaio (…) do Reino não vai falar sobre Tancos tão cedo. Pois, porque eles sabem, aliás o Sá Fernandes já fez chegar à Presidência que eu tenho um email que os compromete. Portanto, eles não vão falar sobre Tancos tão cedo”. Este é um extracto de uma conversa telefónica de Vasco Brazão com a irmã, ocorrida no dia 5 de Abril do corrente ano, que o jornal Sol divulgou. Ricardo Sá Fernandes, advogado do major, negou que o visado nesta escuta seja o PR. O próprio Vasco Brazão terá dito ao Ministério Público que o papagaio-mor “não era necessariamente o Presidente da República”, uma formulação equívoca. E alargou a designação a comentadores como José Miguel Júdice, Marques Mendes e Miguel Sousa Tavares.
Vasco Brazão é uma figura que se apresenta com um certo garbo militar e uma aura de quem se prontifica a sacrificar-se pela nação, mas, ao mesmo tempo, está contaminado por uma certa duplicidade de carácter que se manifesta na forma como tentou manipular, enquanto fonte, um jornalista ou como elaborou em co-autoria um memorando sem data, sem timbre e sem assinatura. Não inspira confiança.
O Presidente da República declarou solenemente e sem margem para dúvidas que “não é criminoso”. Não há como pôr em causa a sua palavra, nem provas nem indícios seguros de que pudesse ter conhecimento do que se passou em Tancos. Só porque é chefe supremo das Forças Armadas não é exigível que esteja a par de todas as circunstâncias e acontecimentos dos três ramos, muito menos interpretar o que lhe escapa como sinal de incompetência ou desatenção.
Na forma tonitruante como decidiu vincar a sua magistratura impoluta, o analista político tomou de assalto o Presidente e fez jus à sua pretérita (?) fama de intriguista-mor da nação. Ao contrário de Rio, Marcelo não se poderia indignar contra o Ministério Público (separação de poderes oblige), e ao mesmo tempo deve-lhe ter parecido conveniente pôr as fontes de Belém a insinuar uma manobra de diversão governamental. E nem faltou a ameaça da retaliação, pois as “fontes de Belém” apressaram-se a aludir a “uma estupidez política” que poderia ter custos para o primeiro-ministro. Para defender a honra pessoal não é necessário construir uma teoria de conspiração. Os mal-intencionados até poderão ver nesta manobra um expediente para disfarçar uma intervenção pouco subtil na campanha eleitoral. Rui Rio já insinuou que concorda com a alusão de David Justino de que as notícias que envolvem o PR no caso de Tancos terão tido origem no Governo. Ou seja, o PSD já glosa a narrativa de Marcelo. Perdão, sejamos rigorosos, a narrativa das “fontes de Belém”. O Expresso noticiou, inclusivamente, que o Presidente não “atendeu telefonema de António Costa”, porque na quarta-feira estava “furioso com o silêncio do primeiro-ministro”. Portanto, é imprescindível afagar periodicamente o ego presidencial e terçar armas por ele como um vassalo agradecido, doutro modo a retaliação começa sobre a forma do amuo.
Que o PS tenha alinhado em teorias de conspiração não é uma opção particularmente brilhante, mesmo se, ao mesmo tempo que fontes do processo afirmam ao Expresso que os investigadores têm a firme convicção de que António Costa não teve conhecimento das ilegalidades de Tancos, no despacho de acusação o Ministério Público se compraz em fazer leituras políticas das motivações dos envolvidos. Já em Belém, as leituras políticas são o pão nosso de cada dia. A coberto do anonimato, há algum entusiasmo (porventura mesmo euforia) quando um dos homens do Presidente declara ao Expresso: “O impacto político deste caso já aconteceu. A maioria absoluta do PS já era. Agora, judicialmente, isto fica para as calendas.”
Com a veemência e a incisividade de quem se indigna ou luta pela sobrevivência, Assunção Cristas, referindo-se ao caso de Tancos, intimou os portugueses a reflectirem “se querem ter um governo que encobre crimes, que iliba criminosos, que impede a justiça de funcionar” (é caso para perguntar que espera o Presidente da República para demitir o Governo de forma a assegurar o regular funcionamento das instituições). E rematou, numa alusão a mensagens trocadas entre Azeredo Lopes e um deputado socialista, como quem dá a estocada final: “É legítimo perguntar: então um deputado do PS sabia e o primeiro-ministro não sabia?” Com todo o seu afã em demolir um adversário político, a azougada Assunção não parou para ponderar que esta linha de argumentação (simplista, no mínimo, na procura de um nexo de causalidade) pode ser usada para atacar Marcelo, que ela sempre procurou preservar. Facilmente poderia questionar: “Então o chefe da casa militar da Presidência da República sabia e o Presidente não sabia?”
Escassos dias depois de ter lamentado o “julgamento nas tabacarias e nos ecrãs de televisão” (“Dá-se cabo das pessoas”, argumentou ele numa intervenção pungente, vista como símbolo da sua genuinidade), Rui Rio aproveitou a acusação do processo de Tancos para comunicar ao país que é pouco provável que o primeiro-ministro não tivesse sido informado do encobrimento pelo seu ministro da Defesa. Quando se referiu ao PR, no contexto da divulgação das escutas a Vasco Brazão que poderiam indiciar que Marcelo estava ao corrente da novela de Tancos, Rio defendeu que “as notícias carecem de ser comprovadas” e que Portugal precisava “de uma protecção evidente ao órgão que é a Presidência da República”. Se o facto do líder do PSD não se preocupar em “proteger” o primeiro-ministro é compreensivel, já se entende menos a forma frívola e meramente proclamatório com que presume o grau de conhecimento de outrem sobre determinada matéria sem se preocupar com a fundamentação. E ainda afirmou: “(…) eu nunca poderei dizer mesmo se ele sabia ou não”. Desde quando uma insinuação equivale a um questionamento político?
A direcção de informação da TVI emitiu uma nota a repudiar a forma como vários dirigentes do PSD (incluindo o seu líder) insinuaram que a notícia em que o Ministério Público envolvia o PR no caso de Tancos se trataria de uma cortina de fumo gerada pelo PS. Ora, tendo a TVI sido a primeira a noticiar o facto, considera esta imputação “insultuosa”. A nota lembra que esta informação “acabou confirmada pela acusação pública do processo”. E numa frase particularmente relevante, “a TVI assegura que a imputação que o PSD e outros responsáveis políticos [sublinhado meu] estão a atribuir à origem desta notícia é falsa, infundada e difamatória”.
Uma mistura de desleixo, informalidade, espírito de corpo perverso, rivalidades patéticas e falta de sensibilidade política tornaram o episódio caricato do desaparecimento e do posterior “achamento” das armas em Tancos numa espécie de comédia manhosa de Hollywood. A dignidade do Estado e a honra da instituição militar exigiam outro zelo dos protagonistas institucionais.
Imagem: "Natureza-morta com Gato e Papagaio" de Yuri Gorbachev (Courtesy of Bert Christensen)