O ÚLTIMO DESFILE DE KARL
Fevereiro 26, 2019
J.J. Faria Santos
A sua propensão para criar aforismos rivalizava com a sua prolífica produção enquanto designer de moda, podia ler-se no obituário do New York Times assinado por Vanessa Friedman, onde a autora considerava que o grande mérito de Karl Lagerfeld não consistira exactamente na “criação de uma nova silhueta”, mas sim no exercício da identificação da essência e consequente reinvenção de marcas tradicionais, sem receio de rupturas. Friedman recordou no artigo as palavras de Anna Wintour, em 2015, quando entregou a Lagerfeld um prémio atribuído pela indústria de moda britânica: “Mais do que qualquer pessoa que eu conheça, ele representa a alma da moda: inquieta, visionária e vorazmente atenta à nossa cultura em mudança”.
Também José Cutileiro no Expresso destacou, para além da “vida profissional intensa”, a sua qualidade de “autor percutante de aforismos”, seleccionando alguns exemplos, como aquele em que Lagerfeld professa a sua paixão avassaladora pela leitura (“Tenho este prazer culposo de ler todo o tempo. A gente do Norte tem esta ideia estúpida, puritana, do dever e do trabalho”), que se materializou numa biblioteca de cerca de 300 000 volumes; ou aqueloutro em que expressa a sua sede de conhecimento desprovida de pretensiosismo (“Gosto de saber, saber tudo. Estar informado. Sou uma espécie de concierge universal, não um intelectual”). Não faltam mesmo tiradas com ressonâncias proustianas (“Porquê viajar, fazer milhares de quilómetros, quando da nossa janela podemos apreciar tudo”), ou proclamações que evocam Oscar Wilde (“Detesto ricos que vivem abaixo das suas posses”).
Como refere Vanessa Friedman no artigo citado, o livro de 2013 O Mundo Segundo Karl reúne os seus considerandos e boutades, incluindo afirmações como: “Eu sou muito terra-a-terra. Mas não desta terra”. Se conjugarmos esta afirmação com uma outra feita no documentário de 2008 Lagerfeld Confidential (“Eu não quero estar em carne e osso na vida das outras pessoas. Eu quero ser uma aparição”), construímos o retrato de uma criatura do outro mundo pronta para, qual espectro, permanecer na nossa memória como um ícone de elegância e sageza. Naquele exacto ponto em que uma aparente superficialidade convive com uma insuspeita densidade.