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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

PORQUE VOLTO SEMPRE PARA ELLA

Novembro 27, 2018

J.J. Faria Santos

O tema Amor em Paz, da dupla Tom Jobim/Vinicius de Moraes, foi inicialmente gravado por João Gilberto. Na sua versão original ou na versão inglesa com o contributo de Ray Gilbert foi alvo de reinterpretações por nomes como Chet Baker, Dianne Reeves, Frank Sinatra, Luz Casal e Ella Fitzgerald. Vinicius, que escreveu mais de 300 canções, era nos anos 50 do século passado, “associado a uma improvável combinação de poesia, uísque e mulher”, explicou Ruy Castro, acrescentando que o envolvia “um halo de boémia e prazer”. De Tom Jobim, diz o mesmo Ruy Castro, que é “a referência, o parâmetro, o símbolo” da música popular brasileira.

 

Amor em Paz percorre toda a paleta de emoções do romantismo: o amor sem limites, a frustração, a tristeza, o desespero e, por fim, a redenção, o momento em que ele deixa de ser um turbilhão, um vórtex aliciante mas calamitoso, para se transformar num sereno usufruto. É o amor em paz, “ porque o amor é a coisa mais triste quando se desfaz”.

 

Ella Fitzgerald gravou a sua versão de Once I Loved para o álbum Take Love Easy, editado em 1973. Unicamente acompanhada pelo guitarrista Joe Pass, a diva do jazz é um prodígio de subtileza e emoção, criando em pouco mais de dois minutos uma interpretação canónica, naquele seu estilo effortless de três oitavas. Nem vestígios do drama de uma balada soturna, nem balanço de bossa nova para enganar a tristeza. Ella narra o percurso que vai do arrebatamento ao choro e da “infinita tristeza” ao apaziguamento sempre no mesmo tom sereno, ainda que possamos notar vulnerabilidade num verso e revigoramento noutro. Mas é a verdade da sua interpretação que nos interpela e comove. É por isso que volto sempre para Ella. E cada regresso é uma descoberta.

O SULTÃO DO TWITTER E A VERDADE EM FUGA

Novembro 20, 2018

J.J. Faria Santos

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O homem tem a altivez dos escolhidos. E gere as suas intervenções como se fosse um funâmbulo pisando a linha fina que separa a determinação da arrogância. Como se o sentido de Estado, e toda a dignidade da função, lhe tivesse sido incrustada no rosto como uma segunda pele. Porém, não há como não apreciar a clareza cortante de Emmanuel Macron quando afirma, tendo como destinatário Donald Trump, que “ser aliado não é ser um vassalo”. Ou a feroz defesa dos mecanismos institucionais, sublinhada pela irredutível noção de que “ a diplomacia não é feita com tweets, e sim com conversas bilaterais”.

 

A propósito da caravana que partiu das Honduras, e da proclamação de Trump no sentido de proibir os ilegais de solicitarem asilo nos EUA, Masha Gessen escreveu um texto notável na New Yorker online acerca da “falsa distinção entre ‘migrante’ e ‘refugiado’”. Que ela denomina de “ficção legal”, dado que pretende estabelecer que “as dificuldades económicas são de algum modo independentes da exclusão política e da perseguição política”. “Implícita nesta pretensão”, prossegue a autora “está a visão de que a desigualdade económica entre as nações é de algum modo natural, e por conseguinte, os cidadãos das nações mais ricas não têm a responsabilidade de acolher os que fogem da pobreza noutros lugares”. Gessen é particularmente assertiva na denúncia da “histeria trumpiana sobre o fluxo de imigrantes”, censurando a caracterização destes como violentos e criminosos, sendo que na narrativa oficial só muito poucos merecem ser acolhidos. E alerta para a necessidade de combater o argumento prevalecente de que “a livre circulação de pessoas pelas fronteiras é indesejável, assustadora e, em última análise, impossível”, porque doutro modo as pessoas que se caracterizam como “bondosas e compassivas continuarão a apoiar Trump e a guerra da sua administração contra os imigrantes”.

 

“Fazer campanha e incentivar a nossa base de apoio não é governar. Governar requer que se promova a aproximação dos diversos pontos de vista, em vez de simplesmente calcular ganhos e perdas”, escreveu, referindo-se a Trump, a historiadora Doris Kearns Goodwin na edição de Novembro da Vanity Fair. Num artigo em que compara as presidências de Trump e Theodore Roosevelt (descrito como uma figura carismática com apetite pela celebridade, feitio desafiador e talento para aforismos), com inquestionável vantagem para este, Goodwin traça um cenário actual preocupante onde as meias-verdades e as mais descaradas mentiras proliferam num ambiente putrefacto onde, cúmulo dos cúmulos, são as “análises críticas e as discordâncias [que] são classificadas como falsas”. Para a autora, neste inquinado jogo político, já não se trata de ganhar ou perder. Doris Kearns Goodwin destaca a “erosão do sentido” do discurso político, para antever um futuro próximo no qual “a confiança foi vaporizada e a verdade se tornou fugidia”.

FELGUEIRAS CONTRA BELÉM

Novembro 13, 2018

J.J. Faria Santos

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Dizem que o Presidente está indignado e furioso. E sob ataque. Por parte de quem? O Expresso revela “a convicção em Belém” acerca do rol dos interessados: a Polícia Judicial Militar, “sectores da direita mais conservadora dentro e fora do Exército e “se não o Governo, pelo menos alguns sectores do PS”. O que verdadeiramente enfureceu Marcelo foi a notícia do Sexta às Nove de que a Presidência da República teria sido informada do encobrimento de Tancos.

Daí a proclamação fulminante em tom alegrista: “Se pensam que me calam, não me calam”. Em pouco tempo, o histriónico comentador Marques Mendes veio do alto do seu púlpito televisivo anunciar à populaça, com a eloquência impressiva do português genuíno, que o “Governo ajudou à festa”, “directa ou indirectamente”, que é uma formulação nebulosa útil para todas as eventualidades. Talvez se possa ligar o “indirectamente” à alegada irritação que, a fazer fé no Expresso, o Presidente terá sentido pelo facto de António Costa não se ter pronunciado sobre a tese explanada pelo programa de Sandra Felgueiras.

 

É nesta fase da cavalgada heróica do Tancosgate que a ironia irrompe a galope – “o mais loquaz presidente da República pós-25 de Abril” (na definição certeira de António Guerreiro no Ípsilon) terá sentido necessidade de uma palavra de conforto do primeiro-ministro. Só faltou, portanto, António Costa voluntariar-se para a tarefa de desmentir La Felgueiras. Como não o fez, “ajudou à festa”. Estará o Marcelo Presidente (2018) assombrado pelas palavras do Marcelo secretário de Estado da Presidência (1982) que afirmou: “Não há dúvida de que o aparecimento em excesso, a intervenção em excesso, acabam por revelar-se contraproducentes não só para qualquer governante como para o órgão de que é titular.” Recriemos António Variações: quando o titular não se cala, o órgão é que paga.

 

O primeiro-ministro apressou-se a declarar que “o Governo é um livro aberto, não tem nada a esconder”. Claro que os livros abertos facilitam o acesso, mas não garantem a compreensão do seu conteúdo. E o estilo de escrita pode ser mais ou menos propenso a interpretações divergentes. A hermenêutica é um vício para um criador de factos políticos e, talvez por isso, o Presidente esteja “ansioso”, ou Costa ache que ele se excede na demonstração dessa ansiedade, ao passo que o Governo, com sintomas idênticos, opte por uma maior reserva. O dicionário explica-nos que a ansiedade é um “estado afectivo depressivo” provocado pela “apreensão mais ou menos vaga de um mal iminente, real ou imaginário”. Desconfio que a proclamação pública do primeiro-ministro acerca da maleita presidencial possa estar relacionada com a sua suspeita, real ou imaginária, de que no Marcelo de 2018 ainda resida o Marcelo de 1997, altura em que António Costa o via como “um verdadeiro mercado abastecedor da intriga política”.

 

O Presidente queixa-se do facto da RTP não o ter ouvido, isto é, faltou o contraditório. Felgueiras deveria ter-se deslocado a Belém, onde, depois de uma selfie e de uma longa dissertação presidencial acerca das propriedades terapêuticas dos comprimidos com que ele costuma encher os bolsos, seria brindada com um desmentido formal. E, por mais incisiva e insistente que fosse, seguramente que ninguém lhe retiraria o microfone nem lhe barraria o acesso ao provedor dos afectos. E tinha-se poupado nos ansiolíticos.

O FALSO MESSIAS

Novembro 06, 2018

J.J. Faria Santos

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Há algo de absurdo na necessidade que o Presidente eleito Jair Messias Bolsonaro teve de proclamar urbi et orbi (e às redes sociais…) que o seu “Governo será defensor da Constituição, da democracia e da liberdade”. Como se não tivesse sido eleito para o cargo numa nação com instituições consolidadas e respeitadoras da ordem democrática. Claro que ele próprio intuiu que o seu notável cadastro de declarações incendiárias e degradantes, além de ter servido uma estratégia política vitoriosa, poderia impedir o mínimo de normalização do debate político e do exercício dos poderes de que será investido.

 

Sim, o Brasil queria a alternância democrática, mas justificar-se-á ficar só pela alternância? “As minorias têm de se curvar às maiorias. As minorias ou se adequam ou simplesmente desaparecem”, vociferou o Messias. E o eleitor brasileiro disse ámen. O Messias ameaçou prender ou exilar os adversários políticos, “combater a violência com mais violência” e condicionar a comunicação social hostil. Proclamou o seu apreço pela tortura. E o eleitor brasileiro disse ámen.

 

O Messias diz que foi escolhido e que “Deus capacita os escolhidos”. É difícil acreditar que Deus “capacite” quem espalhou uma mensagem de ódio e exclusão. Na primeira página da sua Proposta de Plano de Governo, Bolsonaro inscreveu uma citação da Bíblia: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Escusado será dizer que em nome de uma suposta verdade já se cometeram incomensuráveis atrocidades. E acresce que a mesma Bíblia transcreve os avisos de Jesus, referindo-se àqueles que dirão que vêm em seu nome e que “hão-de enganar a muita gente”, mas também aos “muitos falsos profetas que enganarão a muitos. E, por se multiplicar a iniquidade, resfriará a caridade da maioria; mas aquele que se mantiver firme até ao fim, será salvo” (Mateus 24: 4-13).

 

Jair Messias Bolsonaro nunca escondeu o seu apreço pela ditadura e a sua descrença no poder do sufrágio universal – “Através do voto você não vai mudar nada neste país, absolutamente nada. Infelizmente, só vai mudar quando partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil”. Agora, garante na sua Proposta de Plano de Governo: “A forma de mudarmos o Brasil será através da defesa das leis e da obediência à Constituição”. Afirmações contraditórias que expõem uma condição de falso Messias, que não só não parece reunir as condições para promover uma mudança que congregue e inspire a nação brasileira, como ainda se enreda numa duplicidade de afirmações que contraria a sua intenção de libertar pela verdade. Muita firmeza será necessária para manter o Brasil a salvo. 

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