UM PSICOTÉCNICO DELICADO MOROU EM BELÉM
Outubro 30, 2018
J.J. Faria Santos
A revelação consta do último tomo que publicou da sua vasta obra de mais de duas dezenas de títulos. Mais do que um psicólogo capaz de analisar os sentimentos e os pensamentos dos outros, foi um psicotécnico arguto na avaliação das aptidões que os que com ele se cruzavam possuíam para o desempenho de determinadas funções. Parece que lidou com espíritos propensos à psicastenia (dados a hesitações e dúvidas), o que lhe deve ter sido particularmente difícil de entender, sendo legítimo ver a parte final do seu mandato como um verdadeiro psicodrama. Não sabemos se, nessa altura, não terá sido acometido pela maleita da psicolepsia (à semelhança da reacção vagal), mas a verdade é que é notável que um economista e professor, no desempenho do cargo de Presidente da República, tenha escondido tamanho talento.
Cavaco Silva explicou em entrevista à TSF que neste seu último livro de “prestação de contas” faz “avaliações de políticos, tendo presente o diálogo com eles mantido, procurando um rigor dos factos que seja difícil de desmentir”. Se imaginam que esta tarefa implica um elevada dose de subjectividade, enganam-se. As avaliações dele equivalem a factos consumados e indesmentíveis. Na mesma entrevista, frisou que foi “bastante delicado”, não contou tudo e entendeu “deixar de fora as questões pessoais”. Portanto, por favor, não o confundam com um magnata americano que trata os adversários políticos como se estivesse na escola primária: a “Hillary desonesta” ou o “Ted mentiroso”. Os retratos do Costa “artista de sorriso fácil”, do Seguro “inseguro, medroso e desconfiado” ou do Portas “ infantil e pouco patriótico” são apenas o produto de um método sofisticado, uma espécie de radiografia infalível (obviamente!) do carácter dos políticos. Que esta fenomenal experiência tenha sido conduzida com elevado grau de sucesso por alguém tão alheio ao fenómeno político é verdadeiramente assombroso.
Foi aliás esta condição (de ocupante de altos cargos no aparelho do Estado sem nunca ter sido político) que lhe permitiu extrair conclusões originais e não rebatíveis. Este horror à política manifesta-se na forma como classifica o actual primeiro-ministro de “político profissional de pendor tacticista” que aprendera com Passos Coelho “que, em política, uma excessiva preocupação com a verdade não era o caminho para o sucesso”. Porém, surpreendentemente, para quem vê a política com um certo asco, Cavaco Silva censura no seu livro a “desastrada estratégia de comunicação do Governo [de Passos Coelho], incapaz de apontar uma centelha de luz ao fundo do túnel”. Por outro lado, como na sua carreira não-política constam cinco vitórias eleitorais (um inequívoco sinal de sucesso), pode concluir-se que ele mesmo foi uma excepção à regra ou em alguma altura prevaricou e secundarizou a “ excessiva preocupação com a verdade” que enforma o seu carácter só questionável por quem nascer duas vezes?
A mim, custa-me a crer que alguém com tão elevado sentido de Estado, com um empenho indomável em prestar contas e com um desprezo acentuado pela política tenha alguma vez sucumbido a expedientes lícitos mas menos nobres. Sei lá, a ideia de congeminar pacotes de medidas populares ou aumentar os funcionários públicos antes de actos eleitorais, ou ainda menosprezar ou denegrir os esforços de um Governo que recorreu à ajuda externa e foi fundamental para a adesão europeia, para dessa forma ascender ao poder, no seu partido e no país, a pretexto da rodagem de um carro, são actos que me parecem inconcebíveis da parte de Aníbal Cavaco Silva. Teria de ser demasiado tacticista. O que ele não é, seguramente. Ele é um institucionalista, mesmo quando insiste em se referir ao XXI Governo Constitucional como “a geringonça”. Sejamos compreensivos. Serão ainda as sequelas dos últimos meses do seu segundo mandato presidencial, altura em que o psicotécnico poderá ter estado à beira da psiconeurose.