A CELEBRIDADE INSTANTÂNEA QUE ARISTIDES SALVOU
Agosto 28, 2018
J.J. Faria Santos
A mulher chegou a Paris em 1928, virtualmente desconhecida, apresentando-se como uma vedeta do cinema. Matisse, Chagall, Cocteau e mais 48 artistas acederam a retratá-la em menos de dois anos (quadros a óleo mas também esculturas em bronze ou barro). Os retratos destinavam-se a ser usados na rodagem do filme A Mulher das Cem Caras, a ser protagonizado por ela com argumento e produção do seu empresário. Décadas antes das celebridades instantâneas das redes sociais da era da Internet, Maria Lani tornou-se viral. A colecção de arte assim gerada circulou por galerias nos Estados Unidos e na Europa, a musa brilhava nas colunas sociais, foi apresentada a Coco Chanel e até os premiados Louis Bromfield (prémio Pulitzer) e Thomas Mann (prémio Nobel) colaboraram no argumento do filme.
Brian Moynahan conta a história na Vanity Fair de Setembro, num artigo intitulado Musa sem Rasto. O que começa por ser notável, estando em causa uma arrivista com pretensões a figurar no star system cinematográfico, é que Lani não era particularmente bonita. Em compensação, a fazer fé no relato de Moynahan, era dona de um carisma pouco usual e de uma incrível capacidade de transfiguração, qualidades recomendáveis numa actriz. Jean Cocteau queixava-se da dificuldade em captá-la na tela, visto que de cada vez que desviava o olhar da sua modelo os traços alteravam-se. O autor do artigo escreve que um jornal britânico chegou a recorrer à Scotland Yard, tendo um perito em disfarces afirmado que “nenhum ser humano sem a ajuda de um cirurgião conseguiria distorcer os traços fisionómicos representados nos quadros”. E no entanto, relembra Moynahan, todos retratavam Maria Lani.
A arte da dissimulação, afinal, estava no âmago da sua existência. Não era quem proclamava ser. Criada num bairro judeu de uma cidade polaca, filha de um operário fabril, a ter trabalhado como actriz com Max Reinhardt em Berlim, não se encontraram registos que o comprovem. Muito menos vestígios da sua presença em palcos ou ecrãs de cinema em Paris. O homem que apresentava como seu empresário era, de facto, seu marido. Porventura receosa da eficácia dos seus disfarces, com os alemães às portas de Paris, em Maio de 1940 Lani mandou uma telegrama para Lisboa pedindo um visto. Não obteve resposta. A salvação tomou a forma do cônsul português em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes, que lhe providenciou o que ela tanto necessitava. Juntamente com o marido/empresário atravessou a fronteira francesa para Espanha e viajou para Lisboa. Mais tarde, em Março de 1941, embarcou para Nova Iorque.
Apesar de em 1947 as colunas sociais apontarem como potenciais protagonistas Greta Garbo ou Hedy Lamarr, o filme A Mulher de Cem Caras nunca chegou a ser produzido. Entre períodos de exaltação mediática e hiatos de anonimato ou discrição, Maria Lani acabaria por falecer em Paris, em Março de 1954, vítima de um tumor cerebral. Tinha 58 anos quando a última máscara se cristalizou no seu rosto.
Imagem: "Retrato de Maria Lani" de Robert Delaunay (Wikimedia Commons)