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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

FALTAR-LHE-Á ALGUMA QUINTA-FEIRA?

Fevereiro 28, 2017

J.J. Faria Santos

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Eu sei que Aníbal Cavaco Silva afirmou que o seu mais recente livro “é de um grande rigor factual”. Isso nota-se, por exemplo, na referência às 188 reuniões em Belém com José Sócrates, mas já não tanto em relação ao diâmetro da mesa redonda que mandou instalar na sala de audiências: “cerca de um metro” (95 centímetros? 103 centímetros?). Por outro lado, refere que o “método de registo de intervenções e de conversas” que desenvolveu enquanto estudante universitário lhe “permite anotar com total rigor e absoluta fidelidade, se assim o entender (sublinhado meu), tudo aquilo que seja dito numa reunião.” Acrescentou, ainda, ter feito uma “selecção de assuntos” e ter deixado de fora algumas matérias. Interrogo-me se, na descrição de alguma reunião, terá vacilado perante a sua própria vontade e entendido desleixar um pouco o rigor e a fidelidade. E se, na selecção dos assuntos, a enumeração das acções em nome do “superior interesse nacional” não terá remetido para a gaveta da irrelevância episódios pouco edificantes onde a combinação de vaidade e despeito não se coaduna com um autoproclamado “inestimável serviço à democracia”. Por isso, questiono, faltar-lhe-á alguma quinta-feira? Ou qualquer um dos outros dias?

 

Passemos por cima da divulgação de conversas privadas (não secretas!), do seu tom e forma, a pretexto de uma tradição anglo-saxónica, e dos comentários entre o professoral básico (um preparava-se bem, outro admitia a ignorância), o relatório de assiduidade e o detector de mentiras, e concentremo-nos nos seus apontamentos relativos ao gravíssimo episódio conhecido como o “caso das escutas”. O assunto é descrito como “uma historieta de verão para atrair leitores” e a responsabilidade é atribuída ao aparelho de propaganda do PS em “conluio com uma certa imprensa”. “Pessoas amigas”, certamente interessadas em contribuir para um mandato recheado de inestimáveis serviços à democracia, contactaram-no com o intuito de o “alertar para a ‘tenebrosa’ máquina de propaganda do PS, que teria montado uma operação para minar a [sua] credibilidade institucional e pessoal”. O primeiro comentário que se pode fazer a esta versão dos acontecimentos é que, e tendo em conta que a notícia foi divulgada pelo jornal Público, a perspectiva de imaginar José Manuel Fernandes em “conluio” com o “aparelho de propaganda do PS” é, além de implausível, hilariante. Mas, vejamos os factos.

 

Em Abril de 2008, Fernando Lima, entregou ao jornalista do Público Luciano Alvarez um dossier sobre Rui Paulo Figueiredo, assessor jurídico do primeiro-ministro, cujo comportamento numa viagem presidencial à Madeira pareceu a Lima suspeito.

No dia 23 desse mês, Alvarez enviou ao correspondente do jornal na Madeira, Tolentino da Nóbrega, um email a pedir que este investigasse o caso. Explica que se encontrou com Lima a pedido do próprio Presidente que “achava que o gabinete do primeiro-ministro o anda a espiar”. Alvarez acrescentava que “a eles também interessa que isto comece na Madeira para não parecer que foi Belém que passou esta informação, mas sim alguém ligado ao Jardim”. A 5 de Maio, Nóbrega resume o assunto a “paranóia do PR & Lima”.

A 18 de Agosto de 2009, no jornal dirigido por J. M. Fernandes podia ler-se: “O clima psicológico que se vive no Palácio de Belém é de consternação e a dúvida que se instalou foi a de saber se os serviços da Presidência da República estão sob escuta e se os assessores de Cavaco Silva estão a ser vigiados, confessou ao Público um membro da Casa Civil”.

Numa comunicação ao país, emitida a 29 de Setembro, Cavaco Silva declarou: “não consigo ver bem onde está o crime de um cidadão, mesmo que seja membro do staff da casa civil do Presidente, ter sentimentos de desconfiança ou de outra natureza em relação a atitudes de outras pessoas”.

9 dias antes, o provedor do jornal em causa, Joaquim Vieira, afirmava na sua coluna que “era, aliás, legítimo deduzir que o próprio C.S. [Cavaco Silva] dava cobertura ao que um dos seus colaboradores dissera ao PÚBLICO. Mais significativo ainda, o PÚBLICO teria indícios de que essa fonte não actuava por iniciativa própria, mas sim a mando do próprio PR”.

No seu livro Na Sombra da Presidência, editado no ano passado, Fernando Lima escreveu: “Quando, num certo dia, dei conta, a um jornalista do Público da estranheza, na Presidência, sobre a presença de um adjunto do primeiro-ministro na comitiva de Cavaco Silva que se deslocou à Madeira, foi porque recebi uma indicação superior para o fazer. Não fiz nada à revelia da minha hierarquia, como nunca o fizera ao longo da minha vida na relação que, por dever de funções, mantinha com a comunicação social. O assunto era demasiado delicado para que eu avançasse sem mais nem menos”.

 

Em linguagem “jurídica”, perpassa pela “rigorosa” versão dos factos de Cavaco Silva uma certa “ressonância” de mentira. Aqui chegados, é difícil não concordar com Miguel Sousa Tavares, que na última edição do Expresso acusa o ex-Presidente da República de “com um absoluto desplante e tomando-nos a todos por idiotas”, “ensaia[r] uma indecorosa falsificação” dos factos. Na verdade, parece que estamos no domínio dos factos alternativos na melhor (pior) tradição trumpista (podemos até imaginá-lo, no seu excelso sotaque britânico, a indignar-se perante as notícias do seu lucrativo negócio com as acções da SLN/BPN com um definitivo fake news!). E tendo em mente este degradante episódio das escutas, é irónico o uso que podemos dar ao linguajar cavaquista. Existirá maior deslealdade institucional do que a máquina de propaganda do Presidente da República em “conluio” com um jornal (ou com um director de jornal) minar a credibilidade institucional e pessoal do primeiro-ministro?

 

Nota: Reportando-me à entrevista concedida por Cavaco Silva à RTP, e sem desprimor para os méritos profissionais de Vítor Gonçalves, lamento que ela não tenha sido conduzida por José Rodrigues dos Santos naquele seu estilo outrora tão celebrado e denominado de “confrontacional”. Um tom mais incisivo e menos condescendente com respostas evasivas ou pouco credíveis poderia ter evitado que a emissão parecesse um evento promocional no âmbito de um lançamento editorial.

 

AS CACHAS DA CAIXA E A DOUTRINA MONTENEGRO

Fevereiro 21, 2017

J.J. Faria Santos

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                                                Fonte: imprensafalsa.com

 

Parece que o desencanto invadiu esse enclave de resistência do liberal luso que é o Observador. Desabafa Alberto Gonçalves (saneado do Diário de Notícias…) que desde que António Costa “abriu o regime à barbárie leninista que a nossa democracia prometia pouco. Hoje promete menos.” O pretexto para estes considerandos é o folhetim da CGD e a respectiva saga em busca da verdade escondida. Luís Montenegro fala em “boicote democrático” e Paulo Rangel já ressuscitou a “claustrofobia democrática”. Curiosamente, no enclave, Maria João Avillez escreve que se acha, e com ela o país inteiro, “devidamente informada sobre a mentira do ministro [o sonso doutorado em Harvard], as inabilidades de Domingues [esse paradigma da transparência que se dispõe a entregar meses de SMS], as manhas da geringonça [Belzebu, Lúcifer] e as incautas e exaustivas intromissões (…) do sempre histriónico Presidente da República. [colaboracionista!]”

 

Claro que nesta altura já toda a gente percebeu o que se passou. Desde as exigências do génio da gestão bancária e da sua inolvidável equipa (mesmo com alguns elementos a serem forçados a formação acelerada…) até à ligeireza e à informalidade com que o poder político procurou acomodá-las. Agora, para a direita ressabiada e revanchista, tornou-se imperioso marcar o ministro das Finanças (e quem sabe se mais alguém…) com o ferrete da mentira. Longe vai a preocupação com o sistema financeiro e o que poderiam pensar da instabilidade os mercados e as agências de rating. Agitam-se grandiloquências como a honra perdida do ministro (mesmo que a prova dos factos possa ser inconclusiva), a ditadura da maioria ou o totalitarismo (?). E um conselheiro de Estado vê-se perante um dilacerante dilema, um verdadeiro conflito de interesses, entre a amizade por um banqueiro e a lealdade institucional que deve a quem dispensa conselhos. Já o outro conselheiro de Estado tem um conflito mais prosaico, dividido que está entre a popularidade do Presidente e a sua própria popularidade, medida pelo share e pelo rating (não exactamente o da República…) sensíveis às cachas da Caixa.

 

Numa altura em que, para citar novamente uma voz do enclave, Helena Garrido, “se não fosse o caso da CGD estaríamos todos a festejar o fim de ano económico que tivemos, que ultrapassou as melhores expectativas”, e em que, consequentemente, “o Governo pode apresentar-se, sem margem para dúvidas, como um vencedor”, a insistência da oposição em prolongar a novela da CGD deriva deste sucesso julgado impensável. Luís Montenegro, em circunstâncias diferentes mas comparáveis, explicou bem em Março de 2015 esta dinâmica da oposição. Comentando a insistência da então oposição em pedir esclarecimentos a Passos Coelho acerca das suas dívidas à Segurança Social, Montenegro declarou que os deputados da oposição “nunca vão ficar suficientemente esclarecidos”. E explicou “Faz parte da dinâmica política que partidos da oposição tentem empolar ou mesmo aproveitar-se da situação”.

 

Marcelo bem pode passar a certidão de óbito à polémica da Caixa, e até decretar a impossibilidade da ressurreição, que o seu dilecto correligionário Luís Montenegro (o tal das “qualidades invulgares” a quem augurava “muitos sucessos políticos”) insiste no encarniçamento terapêutico, querendo à viva força reanimar o cadáver.

 

DESMEMORIADOS E PRIMAS-DONAS

Fevereiro 14, 2017

J.J. Faria Santos

O líder da oposição que ganhou as eleições disse que nunca outro ministro errou tanto quanto Mário Centeno. A sério? Isto dito por quem chefiou um Governo que para 2013 previa um crescimento de 1,2% do PIB (-1,4% foi a meta atingida), um incremento no investimento de 3,9% (-6,3%), uma taxa de desemprego de 13% (16,2%) e uma dívida pública em percentagem do PIB da ordem dos 106,8% (128%). E cujas execuções orçamentais se caracterizaram pelo recurso sistemático aos rectificativos. Aos pares. E cujo ministro das Finanças, Vítor Gaspar, na carta de demissão datada de 1 de Julho de 2013, afirmou textualmente: “A repetição destes desvios [no défice e na dívida] minou a minha credibilidade enquanto Ministro das Finanças.” E, mais à frente, reputando de “muito graves” o nível de desemprego e de desemprego jovem, considerava urgente a transição para uma “nova fase do ajustamento: a fase do investimento!” E concluía, talvez entre a lucidez e o desencanto: “Esta evolução exige credibilidade e confiança. Contributos que, infelizmente, não me encontro em condições de assegurar.”

 

Chamam-lhe risco sistémico. Parece algo difuso e indefinido mas, talvez por isso, inegável. É um espectro que ninguém quer ver materializar-se completamente. E, acima de tudo, o sistema financeiro é vital para a prosperidade das nações. Por isso, na Europa, entre 2008 e 2010 foram intervencionadas 215 instituições financeiras. Em Portugal, como no resto do mundo, graças a um estatuto especial, parte imunidade, parte impunidade, os banqueiros são uma casta superior que, nos intervalos da sua missão de aspergir o sistema circulatório da economia com crédito, se pode entreter a dar a extrema-unção a governos ou a perorar sobre a resistência dos portugueses à austeridade. Estes missionários da criação de valor, comportando-se, claro, segundo inatacáveis padrões de conduta, acabam por desenvolver uma espécie de complexo de prima-dona, reivindicando privilégios que lhes permitam auferir os proveitos do seu esforço por detrás de um biombo que os proteja da transparência. Porquê? Se calhar, porque o rei vai nu.

 

MULHERES POUCO CONVENCIONAIS

Fevereiro 07, 2017

J.J. Faria Santos

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                           "Retrato de Peggy Guggenheim" de Alfred Courmes

                                         (Courtesy of Bert Christensen)

 

Entrevistada para a edição de Fevereiro da Harper’s Bazaar, Madonna explicou o seu empenho na luta pelos direitos das mulheres, pelos direitos dos homossexuais e pelos direitos civis em geral com o facto de sempre se ter sentido oprimida. Reconhecendo que este papel de vítima se coaduna mal com o seu estatuto de vedeta pop branca, rica e bem-sucedida, atribuiu esse sentimento ao facto de ser mulher e se ter “recusado a viver uma vida convencional”. Ter criado uma família heterodoxa e “ter amantes três décadas mais jovens” causa desconforto nas pessoas, conclui.

Para além de referências ao seu novo projecto cinematográfico, Loved, que irá realizar e em cujo argumento colaborou, uma adaptação do romance de Andrew Sean Greer The Impossible Lives of Greta Wells, o tópico Donald Trump tornou-se incontornável, com a cantora a comparar a noite das eleições a “um filme de terror”. “Não é um sonho mau. Aconteceu mesmo”. Na altura em que concedeu a entrevista, Madonna percepcionava a comunidade artística como demasiado acomodada, sem que ninguém adoptasse uma posição política ou exprimisse uma opinião firme contra Trump. E atribuía essa neutralidade a cálculos profissionais, mais concretamente para “manterem a popularidade”.

Madonna, enquanto criatura política, acredita na liberdade de expressão, e que as mulheres “detêm o poder sobre a sua sexualidade e sobre a forma de a expressar”. E, sobretudo, não acredita que haja uma determinada idade em que não se possa “dizer, sentir e ser aquilo que se quer ser”.

 

Não será abusivo concluir que Peggy Guggenheim (1898-1979) deteve o poder sobre a sua sexualidade e exprimiu-a da forma que entendeu. A dado momento, gabou-se de ter tido mais de 400 amantes (entre eles Marcel Duchamp e Samuel Beckett), embora haja uma estimativa que aponta para o milhar de parceiros. Uma amiga frisou a Milton Esterow, que escreveu um artigo para a Vanity Fair (Palazzo Intrigue) acerca da batalha legal em que estão envolvidos alguns dos seus descendentes, relacionada com a colecção de arte do século XX exposta em Veneza no museu de arte moderna mais visitado de Itália, que Peggy se sentia atraída pela inteligência dos homens. Não era uma questão de beleza física. Casou por duas vezes, mas certo dia, quando questionada acerca de quantos maridos tivera, respondeu espirituosamente: “Refere-se aos meus ou aos das outras mulheres?”

Esterow, que a qualifica como “enfant terrible do mundo da arte e um dos seus mais influentes mecenas”, refere que em 1949 ela adquiriu o palácio do século XVIII no Grande Canal, em Veneza, e rapidamente o transformou num salão vanguardista frequentado por convidados do calibre de Tennessee Williams, Somerset Maugham, Igor Stravinsky, Jean Cocteau e Marlon Brando. A sua colecção de arte agrupa 326 quadros e esculturas, incluindo trabalhos de Picasso, Pollock, Miró, Dali, Rothko e Giacometti.

Ninguém, incluindo a própria, sabia avaliar exactamente a extensão da sua riqueza. Logo aos vinte e um anos, na sequência do falecimento do pai (vítima do afundamento do Titanic, prescindindo do seu lugar no salva-vidas a favor da sua amante francesa), Peggy herdou 450 000 dólares, o “equivalente a cerca de 6,4 milhões nos nossos dias”. Generosa com os amigos, revelava-se “poupada nas coisas triviais”. A urna com as suas cinzas foi enterrada num canto do jardim do palácio, na proximidade dos restos mortais dos seus catorze cães. Repousa numa propriedade que testemunha a sua paixão e fidelidade à arte. A mesma fidelidade que lhe dedicaram Cappucino, Sir Herbert, Madam Butterfly e os restantes onze caninos.

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