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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

SEI O QUE OUVI NO VERÃO PASSADO

Agosto 30, 2016

J.J. Faria Santos

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Eu sei que o Verão ainda não acabou. Mas o fim das férias é sempre uma espécie de prenúncio de fim de estação. Inevitável como o destino. E não nos é permitido dizer, como Philip Roth de Coleman Silk, “Viu o destino à sua espera e não o quis. Compreendeu-o instintivamente e recuou espontaneamente” (in A Mancha Humana, edição Leya/RTP, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues).

 

Regressei a 1993. Ao álbum Duets de Frank Sinatra, que os puristas encaram com distanciamento, estando implícito que uma certa decrepitude e um certo aproveitamento comercial atirariam as recriações de 13 standards para o reino do dispensável. Manifestamente exagerado. Ouça-se o soberbo arranjo de cordas que abre caminho para Sinatra em Witchcraft (“Those fingers in my hair / That sly come-hither stare”, começa ele por trautear), e depois a notável contribuição de Anita Baker, e percebe-se que a prestidigitação precede o irrecusável feitiço.

 

Aspirar à felicidade. Estar livre para os prazeres da vida. Maria Callas entoando o Sempre Libera da Traviata com o volume do auto-rádio no máximo a caminho da praia numa manhã inundada pelo luz de Agosto. Quem diz que o bel canto brilha mais nas récitas nocturnas em edifícios majestosos, ou se tem de escutar no silêncio de interiores almofadados em aparelhagens de alta-fidelidade?

 

No seu novo trabalho, 2ND TIME AROUND, Natasha Watts, cantora britânica associada a incontáveis hits da pista de dança que misturam house e soul, prossegue a sua inflexão para uma sonoridade em que soul e r’n’b prevalecem. Há um classicismo sedutor que se desprende de temas como Love Who You Are e Lonely. Não há aqui ritmos de aeróbica, exploração da sexualidade a roçar a boçalidade ou sequências de rap modernaças. Apenas bom gosto. E um tema de piano e voz a fechar.

 

Na banda sonora deste Verão também reinou Stevie Wonder. Querem tema mais apropriado ao estio que You Are The Sunshine of My Life? E para os fins de tarde cálidos ou para as noites ardentes, um soberbo manifesto de um amor não correspondido que não contempla a desistência (Overjoyed), e ainda a exemplificação do vírus do ciúme que se espalha graças à persistência de um perfume ou de um nome sussurrado em pleno sono (Lately). Sem esquecer My Cherie Amour, uma criatura “adorável como um dia de Verão” e “inacessível como a Via Láctea”.

 

O ABJECTO, O INOMINÁVEL E O ILUSÓRIO

Agosto 23, 2016

J.J. Faria Santos

frith.jpg                "At the Opera" de William Powell Frith (Courtesy of Bert Christensen)

 

O genérico final de um episódio da versão americana de Shameless faz aparecer o nome Sherilyn Fenn. Incrédulo, verifico que a adolescente sedutora e entediada de Twin Peaks se transformou numa loira platinada, em formato white trash, que veio reacender a chama de uma paixão antiga em Frank Gallagher, agora tão empenhado na sua “carreira” de cancer concierge (uma espécie de conselheiro para pacientes com doenças terminais, na verdade a enésima versão do oportunismo sem remorso). O sempre soberbo William H. Macy continua a liderar o elenco de uma série que se esmera na representação da mais abjecta disfuncionalidade, oferecendo com humor e destempero um retrato dos que, na terra das oportunidades, viram o pesadelo da realidade ofuscar o sonho americano.

 

O rapto da filha do chefe de Estado interino. Exigências não atendidas. A morte em directo. Um corpo profanado. Uma retaliação que resulta em danos colaterais. Uma primeira-dama à beira do suicídio. Tyrant com a sua mescla de drama político e soap opera exótica é o perfeito guilty pleasure de Verão. As personagens podem ser algo esquemáticas, mas há uma aproximação à realidade do Médio Oriente que torna a série viciante – o confronto entre moderados e radicais, as assembleias religiosas como berço do radicalismo, o general americano que oferece apoio militar, uma Comissão para a Verdade e Dignidade almejando a reconciliação possível, o jornalista idealista que se torna candidato presidencial. Como pano de fundo, a eterna dúvida de que o sufrágio eleitoral seja suficiente para fazer triunfar a democracia. Numa terra onde tribalismo rima com terrorismo e política e religião com tensão.

 

Florence Foster Jenkins, filme de Stephen Frears protagonizado por Meryl Streep, narra a história de uma socialite americana que, apesar de cantar horrivelmente, sonhava ser cantora de ópera, e que, graças aos esforços do marido, que subornou alguns críticos que assistiram a espectáculos em ambientes mais ou menos íntimos, usufruiu da ilusão do sucesso. A Time diz que Streep recusou caricaturá-la, optando por uma recriação que releva a sua bondade. Como ensina um dos hinos da bossa nova, “os desafinados também têm um coração”. Jenkins terá vivido para a arte e para o amor, como se alardeia na ária da Tosca que costumava cantar, Vissi d’arte. A reflexão que o percurso de vida de Jenkins convoca é, evidentemente, se a materialização de uma vocação sem um talento à altura da ambição condena a uma existência ilusória.

 

FRANCAMENTE, DONALD

Agosto 16, 2016

J.J. Faria Santos

Frank Bascombe diz que a memória, “caso não surja a doença de Alzheimer, nunca nos deixa recuperar das derrotas”. Eis algo que não parece afectar o candidato Trump. É possível que o seu ego instale, com a rapidez e a acutilância de um tweet, uma desmemória benigna que o afaste da consciência dos dislates que propaga. Bascombe diz também que “o silêncio é a melhor defesa contra as não entidades – deixa-as tornarem-se insubstanciais, como um nevoeiro em retirada”. Esta é uma opção tentadora – deixar a verborreia insana do magnata atolá-lo na mediocridade das suas credenciais como homem de Estado – , mas não creio que seja suficiente para lhe barrar o acesso à Casa Branca. Quebrar o encantamento do eleitorado médio americano com o populismo acéfalo e o voluntarismo prepotente do candidato implica uma atitude mais pró-activa, única forma de evitar que o tal nevoeiro em retirada se transforme no nevoeiro letal do filme de John Carpenter. Porque Donald Trump parece ter afinidades com Fike Birdsong, que Bascombe descreve como um “licenciado por Princeton e pelo Theological Institute (…) a quem ninguém no seu perfeito juízo confiaria uma congregação de cabras” e de quem diz “pertencer a uma estirpe rara de cretinos”.

 

(Frank Bascombe e Fike Birdsong são personagens criadas pelo escritor Richard Ford. Os extractos citados neste post pertencem ao seu livro mais recente, Francamente, Frank, editado em Portugal em Abril do ano corrente pela Porto Editora, com tradução de Artur Lopes Cardoso.)

A QUEDA DO MURO DE BERLIN

Agosto 09, 2016

J.J. Faria Santos

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                                         Fonte: www.luciaberlin.com

 

A vida tal qual ela é. Um compromisso entre o desejo e a possibilidade. Um olhar honesto e por vezes brutal, que reconhece os limites da empatia. Porque afinal “qualquer pessoa que diga que sabe como outra se sente é um idiota” (in A lavandaria self-service do Angel). Instantâneos perspicazes do quotidiano, conclusões surpreendentes (“A solidão é um conceito anglo-saxónico” – in Parva por chorar), retratos eloquentes do serviço de urgência (“A Maud, bebida e aos berros, está espojada numa maca, amassa-me o braço como um gato neurótico” – in Bloco de notas das urgências, 1977).

 

O olhar de Lucia Berlin sobre as suas personagens pode ser comparado ao Jesse do seu conto Quero ver-te sorrir. Jesse “não era bondoso. Bondade é uma palavra como caridade; implica um esforço. (…) O Jesse tinha para com toda a gente uma curiosidade compassiva”. É esta qualidade que ela aplica na soberba descrição de uma mãe no conto . Uma mulher infeliz e cruel que recomenda à filha que não procrie, que detestando crianças as instava a recuar “como se fossem uma matilha de dobermans”, que considerava que o amor tornava as pessoas infelizes e que, quando cortou os pulsos, deixou um bilhete suicida assinando Bloody Mary. Talvez não seja abusivo acentuar o carácter biográfico dos contos reunidos em Manual para mulheres de limpeza, até porque a própria autora escreve num deles, Ponto de vista, que “a maioria dos escritores usam adereços e cenários das suas próprias vidas”.

 

Deparamos com as comparações com Carver, Proust ou Tchekov, e com os encómios superlativos (“escrita ao mais alto nível” – London Review of Books; “pode ser a melhor escritora de sempre” – Publishers Weekly), e permitimos que algum cepticismo se instale. E não é que ele se dissipa? Lucia, acima de tudo,  derrubou o seu muro: o do relativo anonimato ou da escritora de culto dos happy few.

 

“Talvez não seja uma coisa assim tão perigosa de fazer, deixar o passado entrar com o prefácio ‘E se?’”, escreveu Berlin em Voltar a casa. É uma memória que se interroga muito para além da inquietação ou da recriminação, e que aceita o inevitável e o imutável. Mas que compreende que, para sobreviver, por vezes é preciso “fechar a porta à dor, ao arrependimento, ao remorso”.

Em Espera um minuto, Lucia Berlin explica que quando alguém tem uma doença terminal, “todos os dias nos despedimos um bocadinho”. E que “estamos sempre a olhar para o quadro das Partidas e das Chegadas”. Que na grande estação da Literatura, só agora nos tenhamos apercebido da chegada de Berlin é seguramente lamentável. Mas nunca é tarde para absorver as suas crónicas de um quotidiano que se ergue acima da banalidade e do insólito por causa da humanidade dos seus protagonistas.

 

Confesso a minha incapacidade em fazer um ranking de escritores. Desconheço se ela se prepara para aceder ao cânone ocidental. Mas posso testemunhar que o Washington Post acertou quando equiparou o conhecimento da escrita de Lucia Berlin a um “prazer extraordinário”. Satisfaz-me, sobremaneira, celebrar este prazer, em tempos de glorificação da culpa e da expiação.

 

(Manual para mulheres de limpeza, de Lucia Berlin, tem tradução portuguesa de Rita Cana Mendes e chancela da Alfaguara.)

BONECA DE LUXO

Agosto 02, 2016

J.J. Faria Santos

Louise Brooks_bd42.jpg                                Louise Brooks (Courtesy of Bert Christensen)

 

Miranda, 22 anos, adoptou o estilo de uma estrela de cinema dos anos 30 do século passado e cobra setecentos dólares por uma hora de sexo. Derek, estudante de arte, limita-se a chicotear ou a bater nos clientes, ou a ser objecto de desejo, exibindo músculos e deixando-se tocar. Jenna teve um cliente que só quis pentear-lhe o cabelo, durante horas, enquanto ela via televisão. Katie, uma nova-iorquina de 23 anos explica que quase todas as suas amigas praticam algum tipo de trabalho sexual. E diz que é quase uma moda (“almost trendy”).

 

A necessidade de dinheiro é a motivação essencial. Há propinas cada vez mais elevadas, empréstimos para pagar e não têm vontade de fazer, como diria uma escritora portuguesa, um downsizing do seu lifestyle. Muitos deles são filhos da classe média e da classe média-alta, mas não pretendem sobrecarregar os progenitores com as exigências de um padrão de vida que pretendem manter. Alisa, quem tem perfis nos sítios Seeking Millionaire e Date Billionaire e se relacionou durante dois anos com um conhecido investidor de São Francisco, diz que tem uma amiga que exerce esta actividade para poder adquirir produtos de luxo (“I do it for the Chanel”, confessa ela.) O pagamento tanto pode ser efectuado em dinheiro (via PayPal, por exemplo) como em géneros. Existem listas para facilitar a vida aos clientes. Há quem indique iPhones, computadores portáteis ou televisões, mas também mobília, utensílios de cozinha ou produtos para a barba.

 

Nancy Jo Sales, a jornalista que descreve esta tendência de certa juventude americana na Vanity Fair, explica que à medida que nos Estados Unidos se “intensifica o debate acerca da descriminalização do trabalho sexual, discretamente a prostituição tornou-se aceitável (mainstream) entre os jovens, encarada como uma opção viável perante uma situação económica difícil e legitimada por uma vaga de feminismo que interpreta a sexualização como empoderamento”. O cliente quer ter a girlfriend experience sem o investimento emocional de construir uma relação, por mais ténue que seja. Já a fornecedora de emoções constrói uma versão romanceada de uma vida sofisticada e permeável ao luxo, minimizando escrúpulos morais e desprezando gostos pessoais. Como escreveu Isabel Marie no seu romance A Criada: “A memória é a nossa encenadora, aquela que organiza a nossa vida. É ela quem escolhe a sequência, o corte, a colagem, a ordem e que, de acordo com o seu talento, faz da mais banal vida um romance.”

 

(A Criada teve edição portuguesa da Terramar, em 1997, e narra as peripécias de uma doutora em filosofia que decide tornar-se empregada doméstica – na verdade, criada para todo o serviço –, cujas tarefas, diz, “ocupam as mãos e deixam o espírito livre (…) ao passo que a reflexão nos abandona aos perturbadores”.)

 

 

 

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