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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

O NOSSO INFERNO É O PARAÍSO DELES

Março 29, 2016

J.J. Faria Santos

seventh_seal.jpg                            Cartaz do filme "O Sétimo Selo" de Ingmar Bergman

                                           (Courtesy of Bert Christensen)

 

O “Estado Islâmico” deu novo significado a um célebre dito de Sartre – “O inferno são os outros”. O nosso inferno é o paraíso deles – dos “mártires” da jihad rodeados por setenta e duas virgens. Se somos intrinsecamente livres, somos também eminentemente sociais e precisamos do outro para validar a nossa existência. E se o outro tiver, na definição de José Gil, um “comportamento fora da nossa ética, de todo o nosso pensamento humano”? “São como extraterrestres”, diz o filósofo.

 

Como foi possível atingirmos este estado de incomunicabilidade e desidentificação? A brutalidade do conflito no Médio Oriente, os problemas de integração social e as diferenças civilizacionais (do papel da mulher aos costumes, passando pela visão sobre o laicismo) parecem, apesar da sua dimensão, insuficientes para justificar esta insana fúria suicida e criminosa que instala o medo mesmo quando a liberdade nos impele ao desafio. 

 

“Os assassinos no meio de nós esperarão a hora”, escreve Clara Ferreira Alves. Como num filme de alienígenas. Que invadiram o planeta apresentando um rosto humano para esconder intenções destruidoras e propósitos imperialistas. Jacinto Godinho escreveu no Público em Novembro do ano passado que o Estado Islâmico estava “a roubar o palco da produção do visível a Hollywood com espectáculos que retiram o real da ficção e dos efeitos especiais e o devolve com violência aos corpos reais, à dor, à carne e ao sangue”. O Cinema Paraíso de reminiscências de uma infância mágica evoluiu para um thriller inquietante que rapidamente descamba para um gore sem remorso.

REPRESENTAÇÕES: NICO, MARCIA, VIOLA

Março 22, 2016

J.J. Faria Santos

Criamos intimidade com os actores que vemos no ecrã. Mesmo que por pudor interiorizemos a distância - são estranhos de quem só conhecemos personagens e de cujos desempenhos deduzimos qualidades e defeitos num processo absolutamente falível –, não deixamos de experimentar empatia ou repúdio. Há actores, porém, que independentemente do perfil moral do papel que interpretam gozam da nossa cumplicidade. Quer sejam pilares de bondade, vilões incorrigíveis ou criaturas menos maniqueístas e mais próximas de uma certa noção de verosimilhança. E se ainda por cima exibem o que se denominou chamar de star quality, nada ofusca o brilho dos seus desempenhos. Nicolau Breyner era um desses actores. Apesar do pioneirismo e do brilho do seu registo cómico, o meu Nico de estimação habitava o território do drama. Aos seus papéis ditos sérios emprestava uma intensidade e uma multiplicidade de cambiantes que desafiavam o estereótipo e estabeleciam uma autenticidade muito para além das convenções do naturalismo. Herman José disse ao Expresso que ele tinha um “lado amaliano”, pontuado por “momentos de profunda tristeza”. Não sei se esta circunstância particular contribuiu para a excelência dos seus desempenhos dramáticos. Ou se o induziu, para contrabalançar, a recorrer à comédia. O que sei é que agora a tristeza é também nossa. Porque quem representou tantas vidas, esgotou a sua. E a perda é nossa. Irrecuperável.

 

A Dra. Leanne Rorish sabe uma ou duas coisas acerca da sensação de perda. Um acidente de viação privou-a da família e agora, no serviço de urgência, caótico e fervilhante, de um hospital é responsável por decisões que podem salvar vidas. E por diagnósticos que equilibram a ponderação de dados com base na tecnologia com uma intuição médica apurada pela experiência. E pela noção que escolhas extremas implicam decisões de risco e, por vezes, pouco convencionais. Neste jogo da vida há, literalmente, vidas em jogo. Marcia Gay Harden interpreta Leanne na série Code Black com a dose indispensável de determinação acompanhada por uma capa de serenidade magoada. Não parece haver raiva nem negociação. A aceitação é apenas uma forma de continuar a jogar um jogo viciado.

 

O Direito joga-se numa arena para iniciados e almas temerárias. Explorar os subterfúgios legais e as lacunas da lei, e lidar com os egos é tão importante quanto o rigoroso conhecimento dos diplomas legislativos, dos prazos do processo e dos rituais da corporação. Mais importante ainda é gerir a informação. Dentro e fora do tribunal. Naquela fluida fronteira entre a verdade e o inadmissível, a legalidade e a infracção. Marcia Gay Harden teve uma breve participação em Como Defender um Assassino, série protagonizada pela fabulosa Viola Davis. Tal como Marcia, Viola é uma daquelas actrizes que não permitem que a brevidade de um papel impeça a genialidade do desempenho, o que pode ser comprovado pela sua participação no filme Dúvida. Na série em causa, ao interpretar a poderosa e tortuosa Annalise Keating, ao mesmo tempo implacável na barra do tribunal e vulnerável sem ser fraca na vida privada, Viola toca todas as cordas da emoção humana. E mostra-nos que tal como no tribunal pode ser sinuosa a relação entre a justiça e a verdade, também na vida quotidiana podemos sucumbir à circunstância de ter de agir para além do bem e do mal.

TRUMP-L'0EIL

Março 15, 2016

J.J. Faria Santos

1210_12_5_prev.jpg                                                 Imagem: freefoto.com

 

Julgava eu (erro imperdoável) que em termos de ignorância, incompetência e teimosia num candidato à Casa Branca George W. Bush tinha sido o apogeu. Bush, em Junho de 2001, dirigindo-se ao primeiro-ministro sueco Goran Perrson e desconhecendo que estava a ser filmado, afirmou: “É surpreendente que eu tenha ganho. Apresentava-me contra a paz, a prosperidade e o poder instalado”. Sendo improvável, não é impossível que Donald J. Trump possa vir a rever-se nestas palavras.

 

A sequência alucinante de afirmações disparatadas, proclamações ofensivas e asserções não substanciadas, embrulhada numa ignorância atrevida e num simplismo risível, é tal que nos obriga a ponderar se o que vemos é a manifestação em bruto de um ego incomensurável ou se há aqui uma estratégia despudoradamente assente no populismo. Quantas dimensões tem a criatura? O espectáculo pirotécnico das suas afirmações leva-nos a cair no erro de o subestimar? Encoberto pela fanfarronice, residirá algum bom senso?

 

Num artigo publicado em Outubro do ano passado na New Republic, Jeet Heer escreveu que Trump estava a concorrer às eleições como um “populista bilionário”, e que embora fosse incongruente com esta opção a sua “constante defesa do privilégio”, ele parecia ter criado uma “fórmula apelativa” ao unir “populismo e plutocracia”. Nesta plataforma, ele conseguiu reunir o apoio da classe alta interessada em manter os benefícios que encaram como inalienáveis e também de uma certa classe média baixa que não se revê nos conceitos tradicionais de esquerda e direita.

 

Mas estará esta coligação improvável a avaliar devidamente os riscos inerentes a um Trump Presidente? Acreditar na retórica da restauração da grandeza da América é estímulo suficiente para ignorar perigos como o que foi apontado pelo editorialista do New York Times Nicholas Kristof: “Há algum pesadelo mais assustador que o Presidente Donald J. Trump numa crise internacional tensa, indignado e impaciente, com o seu dedo transpirado no botão nuclear?”. Kristof que destaca nele a “notável ignorância acerca de assuntos internacionais”, considera que mesmo que nunca seja eleito já causou dano à nação americana, ao “reforçar caricaturas” associadas aos Estados Unidos e ao “manchar” a respectiva “reputação”, e acaba a compará-lo ao iraniano Ahmadinejad.

 

Ele não recua perante nada. E sobrevive a tudo. Afirmações não confirmadas por dados objectivos, puras falsidades ou tiradas incendiárias. Apoios indesejáveis ou demarcações convenientemente esquecidas. Tiradas veladamente racistas ou abertamente sexistas. Prestações em debates ou em comícios em que trata os adversários com uma insolência adolescente, onde se enquadra magnificamente a sua alusão à grandeza não da América mas do símbolo da sua masculinidade.

 

Num texto deliciosamente intitulado The Weird Inconsequentiality of Donald Trump (Despite His Towering Penis) e publicado no The Huffington Post, Peter Schwartz apelida-o de “neo-fascista racista que activa as emoções primitivas dos americanos assustados, vulneráveis e zangados”. Considerando que uma eventual presidência de Trump introduziria um enorme factor de incerteza, motivada pelo facto de se escolher um “louco para líder” ou “uma pessoa manipuladora que nos quer fazer crer que é louca”, Schwartz defende que estamos a “testemunhar a primeira eleição presidencial em formato reality TV”. O que é inquestionavelmente confirmado pelo artigo de David Von Drehle na Time – para Trump “as audiências (ratings) são poder. Não só as audiências da TV, mas também ‘os novos ratings’ como ele lhes chama: likes no Facebook, pesquisas no Google, menções no Twitter e seguidores no Instagram”.

 

CENSURAS, CAVAQUISMO E EROTISMO

Março 08, 2016

J.J. Faria Santos

The_Republic_between_Slaunder_and_Envy.jpg                                    The Republic Between Slaunder and Envy

                      de Barahona Possollo (fonte: www.barahonapossollo.com)

 

A propósito do seu livro Alentejo Prometido, Henrique Raposo tem sido vítima de comentários insultuosos, ameaças anónimas e até de uma petição contra a venda do livro. Inclusivamente, circularia na Internet a imagem de um homem a queimar um exemplar da obra. Esta grotesca mistura de intolerância, bullying, Fahrenheit 451 e mentalidade de gang prepotente suscita-me indignação e desprezo, sobretudo (mas não só) devido à minha visceral aversão ao efeito manada. Mesmo que Francisco Louçã tenha razão quando afirma que “Raposo tem aquela forma simples, que só cabe aos grandes espíritos, de tratar as questões difíceis do alto da burra”.

 

Paulo Rangel respeita António Costa “como homem, como político, como primeiro-ministro, mas não tolera nem admite receber lições dele. “Não me intimida, nem me calará”, acrescenta. (Há aqui um perfume a Alegre via Contra-informação - A mim ninguém me cala! – aspergido num tom indignado e tonitruante). Tirando Paulo Portas, ninguém ultrapassa Rangel na interpretação do estadista em missão empanturrado de sentido de Estado. E tal como no caso de Portas, também a inteligência de Rangel não o livra de derrapagens embaraçosas para a propaganda e para o populismo.

 

Já Vasco Pulido Valente não tem por João Soares “qualquer respeito, nem como homem, nem como político”, e lamenta que outras figuras só agora tenham descoberto “a insignificância e a grosseria dessa lamentável personagem”. Também José Manuel Fernandes, igualmente a propósito da demissão do director do CCB, considera Soares inultrapassável na grosseria. E, não sei se a propósito, recorda as incursões do ministro no romance erótico.

 

Por falar em erotismo, Cavaco Silva escolheu Barahona Possollo para seu retratista. Acerca do pintor, diz Alexandra Carita no Expresso que “os seus temas são considerados iconográficos, místicos por vezes”, e que a sua pintura predominantemente figurativa recorre a “uma carga erótica assente na nudez sobretudo dos corpos masculinos, belos e muito jovens”. (E já agora, terá sido relevante para a escolha o facto de Cavaco Silva ter residência na Travessa do Possolo, abrilhantada com duas marquises com vidros espelhados?) Barahona Possollo tem um quadro intitulado The Republic Between Slaunder (sic) and Envy (será slander? Ou slaunder é uma mistura hábil do nome slander – calúnia - com o verbo launder – lavar dinheiro, por exemplo?), onde a República posa com a bandeira nacional portuguesa. Se a República em vez de uma moçoila no esplendor da juventude (o esplendor de Portugal?) fosse um ancião sábio, seria abusivo supor que Cavaco Silva se reveria nesta cena, lamentavelmente rodeado pela inveja e pela calúnia?

BLASFÉMIAS EM CARTAZ

Março 01, 2016

J.J. Faria Santos

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                                          Fonte: Faceboook esquerda.net

 

O que é que define “uma afronta aos crentes”? Afirmar, por exemplo, que Jesus não nasceu a 25 de Dezembro, muito menos numa gruta, e que os reis magos não eram reis é um desrespeito à crença? E será “blasfemo e ofensivo” dizer que “factualmente, a Bíblia é uma mentira. Mas é melhor do que uma mentira – é uma ficção.” (Régis Debray in Público, 23 de Novembro de 2002) ?

 

E será “ofender a sensibilidade das pessoas” escrever que “na Igreja Católica, o respeito pelos direitos humanos é praticamente inexistente”, e que catalogar “qualquer relação sexual fora do casamento” como “um pecado grave”, é um princípio que “nem se poderá fundamentar na Bíblia nem no direito Natural” (Herbert Haag in A Igreja Católica ainda tem futuro?, Editorial Notícias) ?

 

E será “falsear a verdade” aventar que algumas acções milagrosas de Jesus que devolveram a saúde a quem padecia de doença “podem ser explicadas como curas psicossomáticas ou como vitórias da mente sobre a matéria”? Ou recorrer à “psicologia de grupo” para explicar o milagre da multiplicação dos pães (todos tinham trazido alimentos e quando “Jesus e os discípulos começaram a dividir a sua comida, todos na multidão se sentiram encorajados a fazer o mesmo e a comida foi mais do que suficiente.” (E. P. Sanders in A Verdadeira História de Jesus, Círculo de Leitores) ?

 

Em Dezembro de 1999, um inquérito dirigido pelo Centro de Sondagens SIC procurou indagar como os portugueses imaginavam Jesus Cristo se ele regressasse à Terra nesse momento. 50% dos inquiridos disseram que a principal mensagem que ele transmitiria seria de paz; 60% responderam que ele pertenceria à classe baixa; 62% afirmaram que ele seria apolítico; e 70% consideraram que ele não ficaria satisfeito com a prática da Igreja Católica. Não sabemos se esta última opinião se mantém actual, mas talvez fosse curial não presumir com facilidade o que crentes ou não crentes consideram “blasfemo e ofensivo”.

 

Escreveu Sanders na obra citada: “ Jesus preferia o encorajamento à censura; ele não julgava; era compassivo e clemente; não era puritano, mas alegre e festivo”. Não sei o que é mais ridículo em toda a polémica do cartaz (ou da imagem só para as redes sociais…) do Bloco de Esquerda – se a pueril e desnecessária tentativa de humor fracturante dos bloquistas, se a reacção desproporcionada e gongórica da hierarquia e dos crentes com carreira política.

 

(O extraordinário padre Gonçalo Portocarrero de Almada, colunista do Observador, jornal que paradoxalmente tanto censura o radicalismo e o extremismo, ilustrou de maneira exemplar o que eu adjectivei como ridículo e desproporcionado. Após ter proclamado a “natureza essencialmente anticristã do Bloco de Esquerda e da sua política”, e concluído que “depois deste incidente nenhum cristão coerente poderá ser seu membro, ou nele votar, sem prejuízo da sua integridade, ou da sua inteligência”, o licenciado em Direito e doutorado em Filosofia arrancou com esta tirada soberba: “…não será exagerado afirmar, graças a esta campanha e não só, que os católicos portugueses fazem, de algum modo, parte da Igreja que sofre perseguição. Que grande honra, para nós, fazer parte do grupo dos milhões de católicos que são perseguidos pelos regimes totalitários comunistas, como os da China e da Coreia do Norte, e pelo fundamentalismo islâmico ou laicista!”)

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