CULTOS
Fevereiro 23, 2016
J.J. Faria Santos
"People in the Sun" de Edward Hopper
(Courtesy of Bert Christensen)
Regressei ao mar. O meu relacionamento com ele é de observação extasiada, nunca de interacção desafiadora. É uma espécie de terapia; não é lazer nem desporto. Dois dias antes, um filme de Fritz Lang intitulado Desengano, onde o mar funciona como espelho de emoções, parece ter induzido em mim a vontade de o rever. Na película, Mae (interpretada soberbamente por Barbara Stanwyck) regressa à terra onde crescera, derrotada pela experiência na grande cidade, para se enredar num novelo de ilusões – como se a vontade de redenção bastasse para esquecer ambições e ignorar tentações. Nada espelha melhor essa sua desilusão que a frase que pronuncia no início do filme, em que diz que o lar é para onde se regressa quando não se tem mais nenhum lugar para ir (“Home is where you come to, when you run out of places”).
Depois de intermináveis dias fustigados pela chuva, eis que o Sol abrilhantou o reencontro. Quase que me apeteceu aproveitar um dos bancos públicos e imitar as figuras do quadro de Hopper (no meu caso com a paisagem alterada pelo mar). Tal como elas, eu poderia embarcar nessa espécie de liturgia, nesse culto tão absorvente que se traduz no alheamento perante todos os outros estímulos. A menos, claro, que eu imitasse o exemplo do homem da fila de trás e tornasse a absorção do calor um acessório do prazer da leitura.
No mesmo dia, morreram dois criadores desse prazer: Harper Lee e Umberto Eco. A escritora que escreveu um clássico da literatura americana, Mataram a Cotovia, legou-nos um personagem, Atticus Finch, que se tornou uma referência ética, afrontando o racismo e explicando que a única coisa que prevalece sobre a vontade da maioria é a consciência de cada um. Ao contrário de Lee, retirada da vida pública e devota da privacidade, Eco espalhava a sua erudição por diversos meios e áreas de intervenção, embora se considerasse sobretudo filósofo. Daniel Politi recordou na Slate uma entrevista dada por ele ao Guardian em 2011, onde se insurgia contra os reptos que alguns lhe faziam para simplificar o seu trabalho em favor da acessibilidade. Explicou ele: “Só os editores e alguns jornalistas é que acham que as pessoas querem coisas simples. As pessoas estão cansadas de coisas simples. Elas querem ser desafiadas.” Por outro lado, revelou que se sentia ofendido quando lhe perguntavam porque seria que tantas pessoas gostavam dos seus livros. “É como perguntar a uma mulher bonita: ‘Porque é que todos os homens se apaixonam por si?’ ‘Bem, porque sou bonita.’”