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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

BREVE CRONOLOGIA DO CASO TECNOFORMA

Outubro 29, 2014

J.J. Faria Santos

 

1984 – Constituição da Tecnoforma.

 

11 de Outubro de 1996 – Criação do Centro Português para a Cooperação. Pedro Passos Coelho presidiu desde o início ao conselho de fundadores. Esta passagem não é referida nos seus currículos e não consta do registo de interesses na Assembleia da República. Os estatutos do CPPC dizem que a instituição “tem por objecto o apoio directo e efectivo a programas e projectos em países em vias de desenvolvimento através de acções para o desenvolvimento, assistência humanitária, protecção dos direitos humanos e prestação de ajudas de emergência”. O fundador do CPPC Ângelo Correia afirmou ao Público: “Dou-lhe a minha palavra de honra que não sei o que isso é." Marques Mendes, por seu lado, reagiu da seguinte forma: “Tem a certeza de que eu fui membro disso? Com franqueza, nem me lembrava disso e não faço ideia de quais eram os seus objectivos.” O CPPC foi idealizado pelo fundador da Tecnoforma, Fernando Madeira.

 

1997-1999 – Passos Coelho exerceu a presidência do CPPC pro bono. Segundo declarações de Luís Brito, ex-director-geral da Tecnoforma, o CPPC representou um custo de 1 milhão de euros neste triénio, mas nunca viu “esses custos reflectidos nas contas”.

 

Outubro 1999 - Passos pede subsídio de reintegração à Assembleia da República, o qual lhe viria a ser atribuído.

 

Fevereiro de 2000 – Passos informa a AR de que exerceu funções de deputado em regime de exclusividade nas VI e VII legislaturas.

 

2000 - Passos torna-se “consultor para a área da formação” na Tecnoforma. O contrato de trabalho contemplava as seguintes áreas “consultoria de formação profissional, sociedade de informação e programa Foral”. Passos diz que iniciou funções algures entre o final de 1999 ou início de 2000. A existência de um contrato formal data de 2002. Fernando Madeira diz que ele não foi consultor da Tecnoforma pelo menos até ao Verão de 2001. Manuel Castro e Sérgio Porfírio, administradores da Tecnoforma, dizem que ele foi consultor desde 1996. Passos terá sido contratado pela Tecnoforma a recibos verdes mediante uma remuneração mensal de 2500 euros.

 

Agosto de 2001 – Fundador da Tecnoforma, Fernando Madeira, vende os seus 80% de capital da empresa a Sérgio Porfírio e João Luís Gonçalves.

 

2002 – Volume de negócios da Tecnoforma em 2002 – cerca de 1,3 milhões de euros.

 

2002 e 2004 - A Tecnoforma vê serem-lhe atribuídos mais de um quarto dos contratos celebrados com privados neste período no âmbito do programa Foral. Miguel Relvas era secretário de Estado com a tutela da formação das autarquias. Nenhuma outra empresa apresentou qualquer candidatura.

 

2004 - Relvas celebra um protocolo visando a formação profissional de técnicos camarários para aeródromos municipais. O projecto elaborado pela Tecnoforma prevê 1063 formandos para nove aeródromos municipais da região centro. Destes só três tinham actividade, residual, e uma dezena de trabalhadores. A formação orçaria os 1,2 milhões de euros.

 

2004 – Helena Roseta terá rejeitado candidatura da Ordem dos Arquitectos a fundos do programa Foral por, alegadamente, a atribuição de fundos ter como exigência a contratação da Tecnoforma para a execução da formação.

 

2005-2007 - Passos exerce funções de administrador da Tecnoforma.

 

Março de 2007 – Fecho de contas. A Tecnoforma só acabou por ministrar 3 cursos com 36 pessoas. O valor pago pelo programa Foral foi 312 000 euros. Número de horas de formação previstas: 52.140; horas efectivamente leccionadas: 13.611.

 

Meados de 2007 – Passos Coelho sai da empresa.

 

2008 – Tecnoforma recebe cerca de 3,1 milhões de euros provenientes do Programa Operacional Potencial Humano (POPH) para formação de adultos e não só.

 

2010 – Tecnoforma recebe mais 4 milhões de euros do POPH.

 

Novembro de 2012 – É decretada a insolvência da Tecnoforma pelo Tribunal de Comércio de Lisboa. Credores reclamam cerca de 2,3 milhões de euros.

 

2012 – Passos Coelho ao Público: “Desconheço qual a data de cessação da actividade do CPPC.” Diz ainda ter presente dois projectos do CPPC – “criação de uma entidade de ensino superior a instalar em Cabo Verde” e “apoio médico e de fisioterapia para amputados em Angola vítimas das minas pessoais”. Não foi possível obter apoios para estes projectos. Os três únicos projectos da ONG foram desenvolvidos em Portugal entre 1997 e 2000, e foram financiados em cerca de 157 mil euros pelo Fundo Social Europeu e pela Segurança Social.

 

Maio de 2014 – O fundador e principal accionista da Tecnoforma, Fernando Madeira, em entrevista à Sábado, esclarece que o objectivo da ONG (CPPC) era relativamente aos “projectos que visassem as áreas da formação profissional” tentar “arranjar os financiamentos” da União Europeia. Para a fase da implementação, “a ONG socorria-se da Tecnoforma para fornecer o know-how”. Quanto a Passos Coelho, afirma: “O Pedro é que abria as portas todas”.

 

Junho 2014 – É arquivado o inquérito–crime relacionado com a formação de pessoal em aeródromos municipais por não se terem detectado irregularidades por parte da Tecnoforma. No despacho, o procurador admite ter havido “um acesso facilitado (ou próprio dos decisores políticos) a toda a informação necessária a assegurar o sucesso da iniciativa”, mas considera não se poder atribuir a tal acção um “ilícito do ponto de vista penal”.

 

Setembro 2014 – Denúncia anónima avança que Passos Coelho teria recebido entre 1997 e 1999 cerca de 150 000 euros pelas funções de presidente do Conselho Português para a Cooperação (CPPC). Os “pagamentos mensais” teriam como destino “a conta conjunta de Passos Coelho que estava aberta no banco Totta & Açores (Totta Santander), na dependência de Almada, na A. D. Nuno Álvares Pereira nº 80 (Pragal), onde ainda hoje se encontra.” A denúncia foi arquivada devido à “extinção da hipotética responsabilidade criminal por via da prescrição”.

 

Setembro de 2014 - Fernando Madeira declara ao Público, referindo-se a Passos Coelho: “Estou convencido de que ele recebia qualquer coisa, mas não posso falar em valores porque não posso provar nada. (…) O senhor não foi para ali pelos meus lindos olhos.”

 

20 de Setembro de 2014 – Passos Coelho: “Não tenho presente todas as responsabilidades que desempenhei há 15 anos, 17 e 18. É-me difícil estar a detalhar as circunstâncias que não me estão, nesta altura, claras.”

 

26 de Setembro de 2014 – Passo Coelho na AR: “Nunca, enquanto deputado, recebi qualquer valor da Tecnoforma. Posso ter apresentado despesas de representação, almoços que possa ter realizado, deslocações que realizei seguramente a Bruxelas, Cabo Verde e até dentro do território nacional”.

 

27 de Setembro de 2014 – O Expresso noticia que entre 1986 e 2001, “os donos da Tecnoforma mantiveram uma companhia offshore na ilha de Jersey onde eram depositados vários milhões de dólares por ano vindos de Angola”. Luís Brito, director-geral da Tecnoforma entre 2001 e 2008, diz que a companhia “funcionou como um saco azul para despesas não documentadas em Portugal”.

 

4 de Outubro de 2014 – Sérgio Porfírio confirma ao Expresso que a Tecnoforma fazia “um donativo de mil contos por mês” ao CPPC. Para “uma conta do banco Totta e Açores no Pragal”.

 

23 de Outubro de 2014 – “Fontes ligadas ao processo”, em declarações à Visão, estimam em cerca de 225 000 euros o valor atribuído pela Tecnoforma ao CPPC no triénio 1997-1999, valor drasticamente inferior ao adiantado por Luís Brito, mas “muito acima das verbas inscritas nos mapas contabilísticos da ONGD”.

 

Fontes: Expresso, Público, Sábado, Visão.

 

 

DR. PASSOS E MR. COELHO

Outubro 22, 2014

J.J. Faria Santos

rego_LOOKING_OUT.jpg

                             "Looking out" de Paula Rego (www.bertc.com)

 

MOTE (A PERGUNTA)

 

Falando a propósito do Orçamento do Estado para 2015, no ambiente inspirador da Casa das Histórias Paula Rego, o primeiro-ministro enfatizou: “Com que cara é que o mesmo primeiro-ministro que durante três anos explicou ao país que precisávamos de cumprir as nossas metas, que não tínhamos outra escolha senão pôr a casa em ordem para ter a confiança dos investidores, para financiar a actividade económica e o Estado, haveria agora de lhes vir dizer que, porque há eleições, íamos baixar os impostos, aumentar os salários e prometer aquilo que não é realista?”.

 

GLOSAS (SUGESTÕES DE RESPOSTAS)


Com a mesma cara com que antes das eleições ele lamentava as trezentas mil pessoas que não tinham subsídio de desemprego, que encontrariam nele “um aliado, um amigo”, e agora tem de ser “aliado” de 406 000 desempregados nessa situação.

 

Com a mesma cara com que deplorava a utilização, por parte do governo anterior, de medidas extraordinárias, e acabou detentor do recorde das receitas extraordinárias (aproximadamente 9339 milhões de euros entre 2011 e 2014, por comparação com 4939 milhões de euros entre 2005 e 2010).

 

Com a mesma cara com que antes de ser primeiro-ministro dizia que os portugueses tinham “um nível de vida mais caro do que a maioria das sociedade desta Europa fora, com ordenados bem mais baixos” e que ”obrigamos as pessoas a pagarem com aquilo que não têm”, para mais tarde acusá-los de serem piegas e viverem acima das suas possibilidades.

 

Com a mesma cara com que dizia que se fosse primeiro-ministro não teríamos o país “com as calças na mão a pedir e a impor mais um plano de austeridade” (“Portugal não precisa de mais austeridade”) e congeminou sucessivos pacotes de austeridade que representam mais de vinte mil milhões de euros.

 

Com a mesma cara com que, antes de ser primeiro-ministro, afirmava: “aqueles que têm mais dificuldade vêem progressivamente o Estado retirar as suas contribuições: é nos medicamentos, é na presença de serviços públicos…”, e como governante, por exemplo, cortou o subsídio de doença e o subsídio de desemprego (montante e período de pagamento), limitou o acesso ao RSI e aumentou as taxas moderadoras.

 

Com a mesma cara com que afirmou que o IVA não era para subir e aumentou a taxa de vários bens e serviços de 6% para 23%.

 

Com a mesma cara com que afirmou taxativamente: “como primeiro-ministro, recuso-me a cortar salários”, para, logo em 2011 e só para começar, aplicar aos funcionários públicos com vencimentos superiores a 1500 € um corte entre 3,5% e 10%, e aos trabalhadores do sector público e do sector privado uma redução do rendimento anual correspondente a meio subsídio de Natal.

 

Os exemplos abundam. Mas é claro que a mesma pessoa que antes de ser governante criticava os que tratavam os “portugueses à bruta” e lhes diziam “nós temos um défice muito grande e, portanto, os senhores vão ter de o pagar” considera estas, digamos, incongruências, como pertencendo ao reino do pragmatismo e não da inverdade. Doutro modo, ver-se-ia forçado a demitir-se, visto ter afirmado a propósito do seu antecessor: “Como é possível manter um Governo em que um primeiro-ministro mente?”.
Podemos estar descansados. “Não dizemos hoje uma coisa e amanhã outra”, afirmou em tempos o líder do Governo recordista na arrecadação de impostos (37,1 mil milhões de euros previstos para 2014, 38,8 mil milhões de euros para 2015). E acrescentou: “Precisamos de valorizar cada vez mais a palavra, para que quando ela é proferida possamos acreditar nela”. Felizmente, em tempos conturbados de vagas alteradas e tsunamis imprevistos, temos este irrepreensível farol ético. Que só tem uma cara.

 

 

TWIN PEAKS - 25 ANOS DEPOIS

Outubro 15, 2014

J.J. Faria Santos

TP_FACE_REC.SM_JPG.JPG                  Fotomontagem de páginas da revista The Face de Outubro/1990

 

O que esconde a superfície de bonomia de uma cidade do interior americano? Que género de pulsões e que tipo de disfunções que se manifestam na intimidade são ocultadas pela cortina da normalidade? Quando David Lynch e Mark Frost, pirateando os mecanismos da soap opera ensaiaram uma resposta com Twin Peaks, nasceu um culto. Jorge Leitão Ramos, no Expresso (A Revista, edição de 23/03/1991), notou a “subversão surpreendente” que a série “introduziu nos padrões ficcionais”, dado que “cada avanço no decorrer da ficção se traduzia não num aclaramento mas numa crescente obscuridade”.
Twin Peaks , mais do que pelo enredo, valia pela atmosfera, pelas figuras excêntricas, pelas idiossincrasias inquietantes, pela obsessiva presença de um mal difuso que se infiltrava pelos interstícios das mais ou menos calorosas relações sociais duma cidade suburbana. David Toop escreveu na The Face (Outubro/1990) que toda a gente tinha algo a esconder – “um filho deficiente, uma sociedade secreta, um marido violento, um relacionamento adúltero, um consumo de estupefacientes ou um negócio manhoso”. Toop, que viu na série “uma forma elaborada de pop art”, entrevistou Lynch , que lhe confessou “adorar uma cidade pequena” , mas que “não pode ser demasiado pequena, tem de ser suficientemente grande para que nem toda a gente se conheça e no entanto existam lugares agradáveis e também segredos estranhos e doentios”. E o segredo, que pode conduzir ao afastamento para assegurar a sua preservação, pode também ser um factor de união em nome de uma partilha que gera alívio e cumplicidade. Para Inês Pedrosa (Expresso – A Revista, edição de 17/11/1990) “em Twin Peaks, as pessoas começam por ser infiéis por desilusão e continuam a ser infiéis pelo absoluto desespero que só encontra conforto no mútuo sequestro de um segredo”.
Exibida no Estados Unidos entre 1990 e 1991, duas temporadas no total de 30 episódios, a série regressará em 2016 com nove episódios dirigidos por David Lynch. A nova temporada será temporalmente localizada na actualidade e o elenco ainda não foi revelado. O que nos permite alguma especulação: regressarão Donna (Lara Flynn Boyle) e Audrey (Sherilyn Fenn) para nos mostrar como evolui a sedução aos quarenta? E James (James Marshall) permanece o “rebelde sem causa” na meia-idade, encavalitado na sua mota, ou terá cedido ao conformismo? E Joan Chen? Continua, ao interpretar Josie Packard, a projectar aquela ideia de que o perigo a rodeia, mas passa por ela deixando-a intacta e causando danos colaterais?
“Don’t let yourself be hurt this time” é o primeiro verso da letra que Lynch escreveu para o tema-título da série, musicado por Angelo Badalamenti e interpretado por Julee Cruise. Vinte e cinco anos depois, que tal uma cover version por Lana Del Rey? Quem melhor para reinterpretar este tema e este verso que parece apelar à experiência para tentar, inutilmente, prevenir a dor. Porque numa cidade de 51 201 residentes ela fatalmente eclodirá. Seja a dor associada ao crescimento, à decepção ou ao luto.

 

OS FAMOSOS INFAMES E A LITERATA INACESSÍVEL

Outubro 08, 2014

J.J. Faria Santos

Como diria a outra, não há coincidências. Partindo desta proposição, resta-nos o fado, o destino. Ora este, segundo o jornalista desempregado que protagoniza o último livro de Manuel Jorge Marmelo, O Tempo Morto é um Bom Lugar (edição da Quetzal), pode muito bem ser “uma invenção dos homens para sacudirem dos ombros alguma da responsabilidade pelos actos que praticam”.
Ora sucede que uma simultaneidade temporal uniu a minha leitura do livro com o regresso da sacerdotiza do telelixo, Teresa Guilherme, com mais uma edição do alarve programa Secret Story. O romance gira à volta de um jornalista que aceitou escrever a autobiografia de uma celebridade da “Reality TV”, uma mestiça de nome Soraya, ao lado de cujo cadáver acaba por acordar, o que resulta no seu encarceramento. Logo no início do livro, M.J. Marmelo descreve assim os concorrentes de programas deste género: “Lavam-se, despem-se, fornicam, dormem, discutem e insultam-se em directo, e fazem absoluta questão de, a cada passo, fazer alarde de uma profunda ignorância (…)”.
Com o decorrer do tempo, e a envolvência amorosa, Herculano, o jornalista, acabou por julgar ver nos silêncios de Soraya algo mais que “vacuidade ou falta de assunto”, descortinando até uma “sageza discreta”, uma compreensão de que “estar calada pode ser uma virtude essencial”, impedindo “os indivíduos de transitarem pela vida prodigalizando ignorância e estupidez”.
Não posso dizer o mesmo dos actuais concorrentes de Secret Story. Pela simples razão de que para tal precisaria de visionar ininterruptamente as sucessivas edições do reality show, tarefa impossível dado que esta versão da “vida tal qual ela é” me provoca um irreprimível asco. Acreditar na espessura da dignidade humana daquelas pessoas passa necessariamente por recusar vê-las naquele contexto.

 

Enquanto uns procuram recriar-se enquanto figuras toscas e estereotipadas de uma ficção manhosa da realidade, em busca da celebridade enquanto inanidade, outros retiram-se da existência comum para criar o seu próprio espaço de respiração, onde o cinema e a leitura são vícios e ponto de partida para alinhavar versões do real onde as personagens se destacam pela impossibilidade de se intuir todos os seus cambiantes.
Ana Teresa Pereira foi guia-intérprete e escreveu para jornais e revistas. Tem 56 anos e publicou 36 livros. Diz que não é um “bicho-do-mato”, mas nem sempre está disponível para responder a solicitações. Raramente aceita falar em público, nem sempre atende o telefone e responde apenas a alguns emails. Isabel Lucas, que lhe traçou um perfil e recolheu declarações no Ípsilon da passada sexta-feira, diz que ela “aceitou conversar, mas na conversa intercala momentos de enorme abertura com outros de retracção”. E o que há de tão extraordinário nisso, apetece-me escrever? Será que a exposição pública, espontânea ou solicitada, terá sempre que manter a linearidade, optando entre dois pólos extremados, entre a revelação incondicional e a reserva intransigente?
Talvez não seja uma exorbitância imaginar Ana Teresa Pereira como uma personagem das suas ficções, uma daquelas que não se confinam a um livro e se repetem em obras sucessivas como convidados inesperados que acolhemos com uma benevolência a rondar o entusiasmo. Poderíamos chamar-lhe Anne, imaginá-la entre flores e gatos, livros e sessões contínuas de cinema. Anne conheceria tanto a intensidade dos sentimentos quanto a sua transitoriedade, e poderia dizer como a narradora de Até Que a Morte nos Separe (Novembro de 2000, Relógio D’Água): “Sempre gostei de histórias de solidão. (…) Não conhecia o amor. Ouvira dizer que existia, mas não tinha bem a certeza. E no entanto pressentia que só podia vir assim, quando a solidão era desmedida, e que depois nos deixava sozinhos de novo.”

 

A SEGUNDA MORTE DE MARGARET THATCHER

Outubro 01, 2014

J.J. Faria Santos

Era uma rua sossegada, pontuada por velhas árvores que lhe proporcionavam sombra. Por trás dos jardins dos números 20 e 21 situava-se um hospital privado onde, três dias antes, a primeira-ministra entrara para ser submetida a uma pequena cirurgia ocular. No apartamento do outro lado da rua, uma mulher acabava de colocar uma garrafa de Perrier no frigorífico quando a campainha tocou. Julgando tratar-se do canalizador, ordenou-lhe que subisse. O primeiro equívoco desfaz-se para logo outro nascer. Com o frenesim mediático que tomara conta da rua, depreende que ele é um fotógrafo ao serviço de um qualquer meio de comunicação social. O que dá origem a engenhosos diálogos à volta da palavra shot (disparo da objectiva / disparo da arma). A dada altura, a mulher tece considerações pouco abonatórias acerca de Thatcher, aludindo “à sua falsa feminilidade”, ao seu amor pelos ricos, à sua ignorância, e à “ausência de piedade”, rematando: “Porque é que ela precisa de uma operação aos olhos? É porque não consegue chorar?”
Com o passar do tempo, e enquanto aguardam a saída da paciente do hospital, estabelece-se uma certa cumplicidade entre a londrina que não tem qualquer simpatia pela primeira-ministra, e que se sente hipócrita ao dizer-lhe que também não acredita na violência como solução, e o operacional do IRA que sabe que alcançar o objectivo que se propõe terá como preço a sua própria vida. A narrativa termina com o atirador a ajoelhar-se para melhor se posicionar para o tiro, enquanto Thatcher emerge do hospital com uns enormes óculos escuros, a mala usada “como um escudo” e o seu cabelo impecável, “que brilha como uma moeda de ouro na sarjeta”.
The Assassination of Margaret Thatcher, um conto de Hilary Mantel, teve direito a pré-publicação no jornal The Guardian e suscitou viva polémica. Choveram acusações de desrespeito pela sua memória e pela família, de ofensa às vítimas do IRA e de poder ser interpretado como uma forma de legitimar a violência como expediente para desalojar um líder democraticamente eleito. Para isto terá contribuído a declarada hostilidade da autora perante tanto a figura de Thatcher como a sua prática governativa. Exercícios de ficção sobre a realidade sempre foram matéria de literatura. Porém, convém não exagerar o poder da ficção interferir na vida quotidiana, mesmo que a vida por vezes imite a arte. O efeito copycat não precisa de inspiração ficcional, e mesmo quando a ela recorre isso não autoriza que com o pretexto das acções de mentes criminosas se condicione o acto criador.
The Assassination of Margaret Thatcher deve ser apreciado pelos seus méritos literários. É um irresistível thriller psicológico que encena um conflito de valores em que os sentimentos mais íntimos colidem com os imperativos morais, num contexto de violência latente. Vê-lo como um ajuste de contas, ou como uma apologia da violência, mais que redutor é um disparate.

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