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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

O FUTURO RADIOSO

Julho 30, 2014

J.J. Faria Santos

A derrocada do GES e, sobretudo, o vexame e o opróbrio que atingiram Ricardo Salgado conduziram a que os evangelistas da regeneração liberal viessem anunciar que depois do choro e ranger de dentes sobrevirá a Terra Prometida “que mana leite e mel.”

De José Gomes Ferreira a Tiago Caiado Guerreiro (para este, parece que há mais liberdade na Rússia que em Portugal…) na SIC Notícias, até João Vieira Pereira (“Vai custar agora a muitos que não tiveram culpa, mas no final haverá mais concorrência, menos amigos e mais inclusão. As regras do jogo mudarão daqui para a frente. A moralização do sistema é óbvia.”) e Luís Marques (“A implosão do Grupo Espírito Santo é o fim de uma era.(…) Tem uma data que ficará para a história: 24 de Julho de 2014. Uma data que poderá ser o início de uma nova era, se todos fizerem o trabalho que tem de ser feito.”) no Expresso, proliferam os arautos de uma nova arquitectura económica e financeira assente na meritocracia e na criação de valor,  imune ao compadrio e à corrupção.

Se partirmos do princípio que a tese de Pedro Santos Guerreiro está correcta, ou seja, que o vazio de poder gerado pelo descalabro do GES vai ser preenchido pelo “credor estrangeiro”, então seremos forçados a concluir que o futuro radioso vai ter o contributo fundamental desta espécie de choque externo. E, claro, todos sabemos que nos outros países o mérito triunfa acima de todos os interesses. E que os lobbies  têm um poder reduzidíssimo. E que os políticos são insensíveis aos cantos de sereia dos financiadores da sua actividade. E que as entidades reguladoras se excedem em rigor, e que a fiscalização dos produtos e da actividade bancária e financeira tornam virtualmente impossível a eclosão de crises sistémicas com impacto devastador a nível mundial…

Uma certa direita gosta de aludir à visão ingénua da esquerda, à sua crença na bondade da condição humana. Será a mesma direita que abandonou o “pessimismo antropológico” e agora anuncia os novos “amanhãs que cantam”?

CHECK-OUT (NO BANCO), CHECK-IN (NO HOTEL)

Julho 23, 2014

J.J. Faria Santos

                                       "Portrait of a Banker" de Mabuse

                                          (Courtesy of www.bertc.com)

 

Há no modus operandi um sinal de distinção: a enorme distância entre transferir documentos do seu escritório no banco para duas salas alugadas no Hotel Palácio e, digamos assim, acumular arquivo num anexo secreto junto à casa de banho. Já basta o desplante da populaça se permitir dar palpites sobre o complexo mundo da alta finança e de jornais internacionais de referência lhe darem voz. O jornal The Guardian, numa peça intitulada Portugal’s Espírito Santo accelerates boardroom changes amid turmoil, auscultou a opinião de (Oh! Horror dos horrores!) um taxista, que assumiu ser assustador que gente “que toda a gente sabia serem os donos de Portugal” tenham criado tamanha confusão, mas, sentenciou por fim, “todos sabíamos que os Espírito Santo não tinham nada de santo”.

Já o Wall Street Journal, num artigo assinado por Patricia Kowsmann, noticiou que os problemas na ESI já eram evidentes desde 2012. Para além de ecos das críticas dos investidores às entidades reguladoras, o jornal cita Passos Coelho (um indiscutível upgrade quando comparado com o respeitável taxista…), e um economista do Barclays, António Garcia Pascal, que serve de porta-voz aos investidores que manifestam estranheza pelo facto desta situação não ter sido detectada e solucionada mais cedo, o que suscita dúvidas em relação a outros problemas que poderão afectar o sistema bancário.

Mas se nos abstrairmos da titilante novela da queda do todo-poderoso banqueiro, mais tonitruante porque ele projectava uma imagem de invulnerabilidade e intocabilidade, o que é relevante é o que Ricardo Costa referiu na sua coluna no Expresso: “Nos últimos cinco anos, os bancos portugueses consumiram 18 mil milhões de euros. Engoliram esse dinheiro apenas para tapar buracos e reforçar capital. Ou seja, dinheiro que não foi para a economia e que não chegou ao bolso de ninguém.” O que de certa maneira se entronca com a visão de Rana Foroohar, na Time, aplicada aos Estados Unidos mas que pode ter uma leitura mais universal, de que “cada vez mais, os negócios estão ao serviço dos mercados mais do que os mercados ao serviço dos negócios”. Foroohar alinha argumentos para demonstrar que se mantém uma política empresarial de prevalência dos lucros de curto prazo sobre a criação de valor e a sustentabilidade dos postos de trabalho. E tira a conclusão óbvia: “Muitos pensavam que a crise económica e a Grande Recessão enfraqueceriam o poder dos mercados. Na verdade, até reforçou o controlo da finança sobre a economia.”

Ricardo Salgado era o DDT. Os novos Donos Disto Tudo, anuncia Pedro Santos Guerreiro no Expresso, são os mercados, os investidores estrangeiros. Os tais que nos EUA arrecadam 30% dos lucros empresariais e criam apenas 6% dos postos de trabalho do país. E que continuam a criar e a negociar os produtos financeiros complexos aos quais Warren Buffett chamou “armas de destruição maciça”. Vai ser importante uma regulação credível e interventiva. Porventura intrusiva (como diria o FMI…). E um poder político atento ao interesse nacional. Que não se deixe capturar pelos interesses financeiros. O capital pode não ter pátria, mas a pátria não se transacciona, nem pode permitir que a negociação de condições de financiamento configure uma situação de capitulação perante interesses externos, ou de abdicação da defesa de padrões mínimos de coesão social.

TRAGICOMÉDIA

Julho 16, 2014

J.J. Faria Santos

Paulette, enquanto aguarda pela sessão de radioterapia, vai-se entretendo a dar palpites, num tom de voz pouco discreto, acerca do facto dos outros doentes usarem ou não peruca. Explica a um alquebrado Jean que o Dr. Chemla lhe diz que ela é uma doente “atípica”, o que quer dizer, apressa-se Paulette a explicar, “que já devia ter ido desta para melhor há muito tempo”. Pascaline e Lionel Hutner têm um drama íntimo a perturbar a sua imagem de casal “cristalizado no seu bem-estar asfixiante”: o filho Jacob está convencido de que é a Céline Dion e até fala com pronúncia do Quebeque. Chantal Audouin acredita que “os sentimentos são mutáveis e mortais”, e despreza os casais, que vê como “uma estrutura ambulante que sobrevive à conta dos solitários”. Acede a um encontro com a mulher legítima do seu amante, Jacques Ecoupaud, e espanta-se com o seu ar “desleixado”. Mas é Thérèse Ecoupaud, com uma revelação fatal, que vai levar Chantal ao internamento numa casa de saúde ao dizer-lhe que Jacques tem outras amantes.

Estes são apenas algumas das figuras que se entrecruzam em Felizes os Felizes, de Yasmina Reza, um romance breve mas intenso, onde a angústia tem uma intimidade desarmante com a hilaridade. De tal forma que uma reflexão num velório acerca do falecimento (“Também eu, penso para comigo, hei-de um dia sufocar na arca da morte”), descamba rapidamente para a evocação de um episódio em que o agora falecido usava um casaco Lanvin demasiado justo que o fazia parecer um “sapo-gigante”, e para a alusão ao facto da circunstância dele conduzir um Peugeot descapotável ter tido como resultado que, ao “chegar a Paris, um pombo cagou-lhe em cima”. Não há solenidade nem circunspecção que resista.

Yasmina Reza mergulha nos mais recônditos recessos da alma humana, analisando desde as mais banais circunstâncias da vida conjugal (“Devia um dia estudar-se este silêncio nocturno, típico da viagens de carro nos regressos a casa, após se ter exibido a felicidade à frente do público, um misto de arregimentação  e de mentira auto-infligida”), até aos mais lúcidos resultados da introspecção (“Há em mim uma região abandonada que aspira à tirania”), passando pelas conclusões incómodas com sabor a senso comum (“a felicidade das pessoas pode ser muito agressiva”).

Yasmina Reza,em entrevista ao Expresso (Atual, edição de 10.05.2014), qualifica o riso como um “recurso maravilhoso”, o que talvez explique esta opção de entremear o escalpelizar dos dramas domésticos com tiradas humorísticas, numa espécie de piedade ou até empatia com as fraquezas humanas. “Mas não será a ideia de felicidade uma idiotice? Teremos mesmo necessidade dessa perspectiva irrealista? Limito-me a achar que viver instantes felizes já é uma sorte e uma glória”, interroga-se ela, quando o entrevistador refere que no livro a felicidade se assemelha quase sempre a uma quimera.

Não é certamente por acaso que o livro abre com uma epígrafe de Jorge Luís Borges: “Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor. Felizes os felizes.” No decurso de uma vida, seguramente, todos teremos alternado os papéis. Fomos amados, fomos amantes, em simultâneo ou em períodos diferidos no tempo, e, voluntariamente ou por força das circunstâncias, com desprendimento ou relutância, prescindimos do amor.

 

(Felizes os Felizes, numa tradução de Ana Cristina Leonardo, tem edição portuguesa da Quetzal.)

CHARLES DU CHARME

Julho 09, 2014

J.J. Faria Santos

Pode ser a voz contra o silêncio e em duelo amigável com Joel Xavier na “Gaivota”. Ou as palavras de Ary acompanhando as notas em cascata ao piano na “Estrela da Tarde”. Ou também as “Palavras Minhas”, recriadas por Bernardo Sassetti em registo jazzy, cantadas com a delicadeza do crooner  e a convicção do poeta. Ou ainda a “esperança acesa atrás do muro” na canção “No Teu Poema”, na qual o fadista encontra potencial para ser um grande êxito internacional. Ou o “Homem na Cidade” que “agarra a madrugada” com a paixão com que o próprio Carlos do Carmo agarrou o fado sem se deixar manietar por ele. Por tudo isto, Rui Vieira Nery definiu-o, em 2003, como alguém que “mergulha numa tradição de que é um pilar fundamental, mas que se afirma ao mesmo tempo, a partir dela, como o mais consistentemente experimental dos jovens fadistas portugueses”. E é por isto também que chamar fadista a Carlos do Carmo não o limita porque o seu fado é inclusivo e universal, tradicional e contemporâneo. E o seu canto não desvirtua o fado porque se alimentou das suas raízes e dedica-se a expandi-lo com um respeito que não exclui a irreverência.

A atribuição do Grammy  pela sua carreira parece ser (permitam-me a leitura muito pessoal) apenas a confirmação prática do que ele canta no “Fado Ultramar”: “Dizem ser próprio da noite / Que os astros se acendem / Sei que pressinto na noite / A alegria chamando: Vem!”. Da quase bossa-nova do “Cacilheiro” à sumptuosidade orquestral de “Canoas do Tejo”, da ternura de “I Giorni dell’Arcobaleno” à cavalgada heróica de “La Valse à Mille Temps”, Carlos do Carmo, sem vedetismos mas com rigor, competência e brilhantismo, evidencia-se como uma estrela. Da tarde, de todas as horas, mas sobretudo da noite. Quando se acende e nos ilumina.

 

 

AQUI DEL REY II - O REGRESSO DE LANA

Julho 02, 2014

J.J. Faria Santos

 

                                        "Lana Del Rey" por Richard Davies

                                          (Courtesy of www.bertc.com)

 

Pop noir, chamaram alguns a Born to Die. Outros, como Caryn Ganz (Rolling Stone), viram nele uma espécie de Peggy Lee meets Mazzy Star. Agora, no novo Ultraviolence, Ganz reconhece que as pinceladas de blues e guitarras psicadélicas não obviam a que permaneça reconhecível a “estética cinematográfica” da cantora. De tal forma que acha que Shades of Cool seria “perfeita para um filme de James Bond realizado por Quentin Tarantino”. Curiosamente, também Laura Snapes, no New Musical Express, coloca Lana Del Rey em primeiro lugar na linha de partida para a interpretação do tema do próximo filme da saga Bond. Snapes designa a sonoridade de Ultraviolence de “lânguido rock do deserto”, mas defende que aquilo que poderia ser uma “poderosa afirmação artística” é minado por vestígios de superficialidade e pela criação de figuras unidimensionais. Alexis Petridis, no The Guardian, embora achando que em Ultraviolence “é tudo tão bem feito que o facto de que todo o álbum se desenvolve no mesmo ritmo sonâmbulo quase não interessa”, defende que se mantém o problema de Lana se repetir nas suas canções (por exemplo, retratos de mulheres horríveis ou fracas e dignas de pena, homens abusadores e prisioneiros dos seus vícios).

Leio estes comentários e apetece-me especular se o que noutra intérprete seria visto como um sintoma de persistência temática, legitimada por uma obsessão artística (as palavras), ou uma opção pela homogeneidade que confere coerência ao produto final (a sonoridade), não serve aqui de arma de arremesso para a estafada questão da autenticidade, como se o artifício, qualquer artifício, fosse fatal para a credibilidade de uma performer.

Confesso que receei que a produção de Dan Auerbach invadisse de guitarras histéricas o tal universo pop noir, mas a minha apreensão revelou-se infundada. Mantém-se inalterada a atmosfera sonora que aliada às vocalizações inconfundíveis de Lana lhe permitem apropriar-se de qualquer tema e tornar imediatamente distinguível a sua marca registada. Escapando à armadilha da repetição da fórmula em relação ao disco anterior, as opções de produção neste novo trabalhoacrescentam negrume ao já de si carregado universo de Del Rey, onde a violência se transmite com uma vocalização de imperturbável suavidade. Shades of Cool, West Coast e Pretty When You Cry  são momentos relevantes num álbum que vale como um todo, e que termina com uma soberba versão de The Other Woman, gravado previamente, entre outras, por Nina Simone, Sarah Vaughan e pela mezzo-soprano Anne Sofie von Otter em parceria com Elvis Costello. A “outra” da canção é uma mulher de unhas impecáveis, cabelo irrepreensível, envolta em perfume francês e habitando uma casa com flores em todos os cómodos. E, no entanto, é uma rainha solitária, condenada a adormecer na companhia das lágrimas por causa de um amor furtivo.

 

 

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