Um dos objectivos da política orçamental inscritos no memorando de entendimento consistia em reduzir o défice das Administrações Públicas para 5.224 milhões de euros em 2013, “através de medidas estruturais de elevada qualidade e minimizando o impacto da consolidação orçamental nos grupos vulneráveis”.
Em 2013, o défice ajustado das medidas temporárias e não recorrentes foi de 8701 milhões de euros (5,3% do PIB). Dado que a despesa total aumentou 2946 milhões de euros, que a receita fiscal foi o principal instrumento de consolidação orçamental e que a despesa corrente primária cresceu 1,9% do PIB, é difícil vislumbrar um cenário de medidas estruturais virtuosas.
Por outro lado, se o desemprego atinge mais de 800 000 pessoas; se em três anos a economia destruiu 332 000 postos de trabalho; se entre o final de 2010 e Março deste ano 109 474 crianças deixaram de receber abono, 259 768 pessoas deixaram de receber uma prestação de desemprego, 303 503 indivíduos perderam o direito a receber o rendimento social de inserção e 44 477 idosos viram subtraído o complemento solidário que usufruíam, é difícil sustentar que foi minimizado o impacto do ajustamento nos “grupos vulneráveis”.
A tudo isto acresce o facto de que, se pusermos em perspectiva a dimensão das medidas de consolidação orçamental anunciadas desde a chegada da troika ( cerca de 29 500 milhões de euros – 17,9% do PIB, sendo que o montante inicial previsto no Memorando de Entendimento se quedava pelos 17 500 milhões) e a redução efectiva do défice expurgado das medidas extraordinárias e irrepetíveis entre 2010 e 2013 (de 8,7% para 5,3%), é no mínimo arrojado defender a bondade do resultado final. Já para não falar da dívida pública, cujo objectivo era não ultrapassar os 115,3% do PIB em 2013 e que cresceu dos 93,4% (cerca de 163 mil milhões) em 2010 para 128,8% no ano transacto (cerca de 217 mil milhões).
Claro que nada disto é particularmente relevante para o primeiro-ministro. O seu objectivo principal, “custe o que custar”, foi sempre o “regresso aos mercados” a taxas comportáveis. Pode pôr um visto no quadrado dos propósitos alcançados. Mérito dele, exclusiva ou principalmente? É difícil argumentar que sim. É certo que foi um executor empenhado do programa de ajustamento, oscilando apenas, naquele seu muito pessoal conceito de fidelidade à palavra dada, entre o “ir além da troika” e a crítica ao “calibramento” das medidas. Por outro lado, se o empenhamento do Governo português era tão relevante, como se explica que meio ano passado desde a tomada de posse as taxas de juro a dez anos rondassem os 13,5% ? E que no final de Janeiro de 2012, com a Europa na iminência de um desacordo entre a troika e a Grécia, os jurosultrapassassem a fasquia dos 17%? E como interpretar que a partir do discurso de Londres de Mario Draghi as yields dos países periféricos tenham descido de forma alinhada e consistente?
Em meados de Abril, Pedro Santos Guerreiro escreveu no Expresso : “Não se trata de ser moralista, mas ‘os mercados’ não estão a dizer que confiam que portugueses e gregos vão pagar as suas dívidas, mas que podem lucrar no processo. Basta ver o perfil dos investidores: de risco”. Pouco tempo depois, a britânica The Economist alertava para uma “bolha nas obrigações da Europa”. Mas esta é a vitória de Passos Coelho, a saída limpa, assente na mediocridade dos resultados do ajustamento, na irracionalidade dos mercados e nos apetites de investidores especulativos, alcançada depois de um processo de devastação social.
O anúncio da decisão, a 4 de Maio de 2014, com o primeiro-ministro a dirigir-se pressuroso para o púlpito com todo o Executivo alinhado atrás dele, desatando a ler um discurso que parecia ser de comemoração do 25 de Abril, foi seguramente uma vinheta surrealista. Juro que cheguei a aventar a hipótese do elenco governativa desatar a cantar a “Grândola Vila Morena”, com os ministros enlaçados, ondulando como seara ao vento, à laia dos grupos de cante alentejano…