UMA AVENTURA NO HIPERMERCADO (CENAS SOLTAS)
Julho 25, 2013
J.J. Faria Santos
O homem estava junto aos abacaxis com ar de missão. Enquanto eu, afivelando a minha melhor expressão de consumidor conhecedor, ponderava agarrar o mais suculento, o homem ofereceu o conselho. Tinha estado emigrado em Espanha (informação claramente supérflua) e vira na televisão (dado dispensável) que a melhor forma de garantir que o fruto ficava uniformemente mais adocicado era invertê-lo. E, como um funcionário informal do estabelecimento, prosseguiu com a oferta da dica aos outros clientes. À medida que fui avançando no corredor, ouvia o homem a repetir o conselho, num efeito de loop , como se cumprisse um verdadeiro serviço público. Cheguei a casa e resolvi testar a teoria do abacaxi invertido.
Nada como uma fila extensa para pagar na caixa para transformar um pacato chefe de família num potencial rufia. Ou o funcionário é demasiado lento, ou o número de caixas em funcionamento é escasso. O homem inclina-se na minha direcção e lança a frase que, a obter o efeito que ele pretenderia, conduziria a uma espécie de motim: “Se toda a gente reclamasse, isto endireitava”. Estaria ele a falar em sentido estrito, a propósito desta situação concreta, ou haveria aqui uma pouco subtil alusão ao estado da nação? Seja como for, estou habituado a confidências neste ambiente: desde a senhora um pouco entradota que pede que eu lhe confirme o preço de determinado produto ao sexagenário que aprova a minha escolha de vinho, acrescentando que o preço é um achado. O que é original é que alguém tenha apostado em mim para espoletar a rebelião, tenha visto em mim um combustível para a revolta. Logo eu que tenho um ar sereno e impassível. Embora em verdade vos diga que só Deus sabe (apenas porque é omnisciente) o trabalho que me dá manter essa impassibilidade…
A situação tem tanto de lapidar como constrangedor. A mulher, acompanhada por uma criança que não parece ter mais de sete anos, vai acompanhando o movimento dos braços da operadora de caixa a manusear os produtos e vai-lhe pedindo que a informe dos totais parciais da conta. No final algumas compras ficam pelo caminho. Não me pareceu que tivesse procedido a qualquer hierarquização – quando acabou o plafond de notas e moedas, acabou o processo de aquisição. O homem que se seguiu, um idoso que parecia estar na casa dos setenta, pousou no tapete seis caixas de Nestum, uma embalagem de fiambre e outra de queijo fatiado. Pagou com uma nota de vinte e apresentou o cartão de fidelização.
Ouvimos os relatos na comunicação social acerca do corte em bens alimentares, ou, noutro sentido, do súbito crescimento nas vendas de determinados produtos de mercearia e registamos a informação sem especiais estados de alma. A verificação in loco destas realidades é como acordar muito cedo com uma banda de heavy metal a testar décibeis.
Nos parques de estacionamento dos hipermercados o inesperado é raro. Pode acontecer que alguém me peça para trocar moedas para utilizar no carro de compras, ou me solicite uma esmola. Já não é habitual chegar ao carro e encontrar um bilhetinho entalado na escova do pára-brisas onde, depois de desdobrado, se podia ler a palavra “liga-me” seguida de um número de telefone. O papel era um vulgar guardanapo, o que sugeria que a criatura protagonista deste gesto telenovelesco estaria, admitamos, a tomar café quando sucumbira à visão do charme dos meus cabelos grisalhos e da minha barba de três dias. Um verdadeiro coup de foudre , convenhamos. Guardei o bilhete na carteira com o mesmo desprendimento com que guardei o talão de compras. Imagino que o ideal seja, em determinadas circunstâncias pessoais, estar sempre disponível para amar, mas digamos que o sábado de manhã não é, para mim, a altura ideal do dia para estratégias de sedução, ainda por cima com travo a adolescência. Mesmo assim, com a minha monumental falta de sentido de timing , dois dias depois, impelido pela curiosidade, marquei o número no meu telemóvel e aguardei que tocasse quatro vezes até que alguém atendesse.