LE CIRQUE DU SOMMEIL
Maio 29, 2013
J.J. Faria Santos
Numa configuração mais semelhante à actual, o circo nasceu em Inglaterra no século XVIII e começou por ser uma sucessão de exibições equestres, evoluindo para um agregado de performances múltiplas que abrange, entre outros, actos de funambulismo, acrobacia, magia, números com animais e pantomina. Com origem remota nos mimos gregos e romanos, o palhaço chegou ao circo em finais do século XVIII e é hoje imprescindível no alinhamento do espectáculo.
Um “circo mediático” armou a sua tenda à volta de declarações de Miguel Sousa Tavares em que este apelidou de palhaço um órgão de soberania unipessoal. Apesar de prontamente ter classificado o facto como um “deslize”, admitindo ter sido “excessivo” na qualificação, Sousa Tavares não se livrou da abertura de um inquérito por parte da Procuradoria-Geral da República. O jornalista não se coibiu de frisar que respeita o Chefe de Estado mas “não tem nenhuma consideração política pelo professor Cavaco Silva”. Quanto ao Presidente da República, julgamos saber que é particularmente sensível a ataques mais virulentos, faltando-lhe alguma tolerância democrática e capacidade de encaixe, resvalando ele próprio para alguns comportamentos revanchistas. Está no direito de se sentir ofendido, mas talvez possamos alvitrar, citando Agustina Bessa-Luís (O Comum dos Mortais, Guimarães Editores), que “quem põe muito alto as suas virtudes pretende iludir com elas as paixões.”
Parece existir uma predisposição na classe jornalística para associar esta personagem circense ao universo da política. Quem é que em Dezembro de 2009, no Jornal de Notícias, escreveu um artigo de opinião precisamente intitulado “O Palhaço”? O inolvidável Mário Crespo. E numa enumeração abrangente e totalizante, estilo sniper disparando indiscriminadamente em todas as direcções, presenteou-nos com nacos de prosa deste calibre: “O palhaço compra acções não cotadas e num ano consegue que rendam 147,5 por cento. E acha bem. (…) O palhaço porta-se como um labrego no Parlamento, como um boçal nos conselhos de administração e é grosseiro nas entrevistas. (…) O palhaço faz mal orçamentos. E depois rectifica-os. E diz que não dá dinheiro para desvarios. (….) O palhaço é inimputável. Porque não lhe tem acontecido nada desde que conseguiu uma passagem administrativa ou aprendeu o inglês dos técnicos e se tornou político. Este é o país do palhaço.” Eloquente e furibundo…ou talvez só furibundo…
Em Maio de 2013, muito para além da honra do alegado ofendido e da liberdade de expressão do alegado ofensor, o que está em causa é a preservação das instituições democráticas e, porventura, no limite, a sobrevivência do regime no contexto de uma soberania limitada. Este episódio é sumamente irrelevante quando comparado com a conjuntura política, financeira, económica e social. É por isso que ele é um fait-divers insignificante e entediante. A este circo mediático falta a vibração e a consistência do Cirque du Soleil; é uma espécie de Cirque du Sommeil.
O que deveria desassossegar o senhor Presidente da República é a generalizada percepção de que ele é cúmplice na sustentação de um Governo que labora persistentemente na imperfeição, no erro, no mal. E o mal, como escreveu Agustina Bessa-Luís na obra referenciada, “é como um charco onde as bolhas fervem e se abrem como bubões de peste. Quem passa ao seu alcance é chamado; quem o desconhece, está perdido; quem lhe sorri, pertence-lhe.”