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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

OS PIRATAS DA EUROLÂNDIA

Março 27, 2013

J.J. Faria Santos

                                "No one's watching" de Andrea Kowch

                                        (Courtesy of www.bertc.com)

 

“Os piratas cercam Chipre” foi o título do post  publicado por Steve Coll a semana passada no sítio da New Yorker . Sem papas na língua, o autor definiu a proposta do Eurogrupo de taxar os depósitos bancários naquele país como “um acto de pirataria”. Enfatizando o cisma Norte-Sul, Coll denunciou a discriminação implícita na forma como os países endividados do Sul são tratados, chegando ao ponto de se interrogar: “será excessivo chamar-lhe racismo?”.

Acerca desta questão, Paul De Grauwe, num artigo escrito para o Expresso (edição de 8.12.2012), foi lapidar: “Os países do Norte da Europa são tão culpados como os do Sul (...) o Norte da Europa, e especialmente a Alemanha e os Países Baixos, acumularam grandes excedentes de exportações. Os alemães e os holandeses ficaram muito contentes por vender os seus produtos e serviços aos pecadores da Europa do Sul. Essas vendas foram financiadas com crédito providenciado pela banca alemã e holandesa”.

Na verdade, não deixa de ser extraordinário que instituições sempre tão pressurosas em assegurar a estabilidade do sistema financeiro, e em alerta máximo perante a ameaça do risco sistémico, tenham avançado com uma proposta tão susceptível de gerar instabilidade. A menos que se trate de uma invulgar afirmação de originalidade – segundo The Economist, “das 147 crises bancárias listadas pelo FMI desde 1970, em nenhuma delas se infligiram perdas aos depositantes, independentemente das quantias detidas e dos bancos onde estavam guardadas”.

Face à mirabolante sucessão de acontecimentos que agrava a dissensão em detrimento da cooperação no seio da União Europeia (já para não falar do problema endémico da democraticidade), ganha cada vez mais actualidade a interrogação de Jacques Le Goff produzida em 1996 na obra “A Europa contada aos jovens”: “Em direcção à unidade ou em direcção ao desmembramento?”. Dezassete anos depois, The Economist tem uma justificação prosaica  para que este desmembramento não ocorra: “O euro estava destinado a ser a manifestação de um grande projecto político. Parece-se mais com um casamento sem amor em que é o custo da separação  aquilo que mantém os parceiros juntos”.

Numa altura em que na Europa, no diagnóstico certeiro de Joseph Stiglitz (Expresso, edição de 9/02/2013), “ existe uma ênfase continuada na austeridade, com autofelicitações sobre o progresso feito até agora, e uma resolução reafirmada em continuar num rumo que mergulhou toda a Europa na recessão”, é lamentável que a Comissão Europeia pareça ter abandonado à sua sorte os estados-membros mais pequenos. Esta supressão de solidariedade é mais alarmante ainda numa altura em que estão em perigo dois dos princípios instituídos na Carta Europeia dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, adoptada no Conselho Europeu de Estrasburgo em 9 de Dezembro de 1989, designadamente os pontos 2 e 4, respectivamente: “Direito ao emprego e a uma remuneração equitativa” e “Direito à protecção social”.

PORTUGUESE HORROR STORY

Março 21, 2013

J.J. Faria Santos

Comentando os resultados das quase três semanas de negociações entre a troika  e o Governo, no âmbito da 7ª avaliação do programa de ajustamento, um membro da comissão política do CDS, ouvido pelo Expresso, interrogou-se: “Para quê tanto sacrifício? Para esta porcaria de resultado?”. Já um dirigente do mesmo partido próximo de Portas recorreu à ironia: “Num mês o défice de 2012 passou de 4,9% para 6,6% E a receita da ANA não explica este desvio colossal!”(Expresso, edição de 16/03/2013).

Atolado no descrédito e desorientado pela natureza rebelde da realidade, Vítor Gaspar só consegue exprimir “desapontamento” pela subida do desemprego (será que esta expressão tão longe da neutralidade asséptica do pronunciamento de carácter técnico pode ser sintoma que o ministro das Finanças, na definição arguta do catedrático dos prefácios, está a “deixar-se arrastar por pulsões emocionais”? Já Pedro Passos Coelho admitiu que é necessário “dar mais atenção aos factores de equidade”, uma formulação compreensivelmente arrevesada para quem é infinitamente mais sensível à eficácia do darwinismo social.

Com o desemprego a caminho dos 19%, a dívida pública a galopar para os 124% do PIB, o défice a derrapar, a troika a acusar o Governo de não saber comunicar e a recriminá-lo por ter feito um ajustamento sobretudo pelo lado da receita, e este a pôr em causa as suas próprias previsões, quem emergirá para nos resgatar deste filme de terror, dirigido pelo messianismo alucinado de Pedro Passos Coelho? Seguramente, só com muita boa vontade é que alguém verá no líder da oposição convicção, capacidade de definir estratégias e rumos, credibilidade para reunir competências e, sobretudo, firmeza para estabelecer rupturas face ao inadmissível. Parece demasiado enredado num abstracto sentido de responsabilidade para ter a audácia de corporizar uma alternativa mobilizadora.

E quanto ao reformado indignado que mora em Belém? Bom, a excelsa figura, soterrada em leis e estudos, vergada a uma carga horária de 10 horas diárias, atormentada pela perspectiva do défice na sua economia doméstica, porfia na sombra, numa dolorosa porque sempre injustiçada notabilíssima acção ao serviço do superior interesse nacional. Por vezes, esta quase monástica aversão ao “culto do efémero e do protagonismo mediático” descamba. É então vê-lo contribuir, por acção ou por omissão, para que se instale a ideia de estar a ser espiado, e protagonizar conferências de imprensa repentistas acerca de questões jurídicas quase esotéricas. Nestas situações, febrilmente contrariado, permitiu-se  “satisfazer os instintos de certa comunicação social”. Que se deve esperar de alguém que postulou a existência de limites para os sacrifícios que se podem exigir e assiste, impávido e hirto, à violação reiterada desses limites? O ouvidor faz agora ouvidos de mercador.

E, no entanto, ela move-se. A alternativa.

ANATOMIA DA GREI IV- O LUTO

Março 14, 2013

J.J. Faria Santos

Já passou mais de um mês desde que o tempo de Frank se esgotou. Aparentemente, o tratamento da fractura resultante da queda desmascarou uma série de achaques que resultaram numa múltipla falência de orgãos e ele não resistiu. Há pouco mais de uma semana, o estado de saúde, já debilitado, da cunhada de Frank, que o velara, agravou-se inapelavelmente e uma complicação de cariz cerebral abreviou a sua vida. Subitamente, para a família, a ideia da morte atingiu uma dimensão avassaladora. Como se um certo inesperado evento (o falecimento) e uma incerta acumulação (um corpo e depois outro) se combinassem para subverter a aritmética da existência – a vida deveria ser mais adição do que subtracção. 

Em O Ano do Pensamento Mágico, Joan Didion retratou exemplarmente a perplexidade da vivência do luto, que junta o sentido prático das acções com o inconformismo pouco racional do pensamento. Descrevendo a tarefa de recolher a roupa, para posterior oferta, do marido, escreveu: “Ainda não estava preparada para enfrentar os fatos, as camisas e os casacos, mas pensei que podia tratar dos sapatos que restavam, já era um começo. Parei à porta do escritório. Não podia dar os sapatos restantes. Fiquei ali por um momento e depois percebi porquê: ele ia precisar dos sapatos quando voltasse.”

Seria de esperar que algo de inevitável não nos surpreendesse impreparados, todavia, a nossa capacidade de previsão fica sempre aquém da dimensão da realidade. Regressemos a Joan Didion: “Não temos maneira de saber que o funeral em si será anódino, uma espécie de regressão sob narcose, durante a qual nos envolvemos no carinho dos outros e na gravidade e significado da ocasião. Também não podemos conhecer antecipadamente ao facto (e aqui reside o âmago da diferença entre a dor conforme a imaginamos e a dor como ela é) a interminável ausência que se segue, o vazio, o verdadeiro oposto de significado, a implacável sucessão de momentos durante os quais nos confrontaremos com a experiência da ausência de significado.” (Edição Círculo de Leitores, tradução de Eduarda Correia).

É possível que a evocação de um cortejo fúnebre assuma a forma de uma celebração de vida? A resposta pode ser resoluta e inusitadamente afirmativa. A minha mais vívida recordação do funeral de Frank consiste na imagem impressiva de uma das filhas dele, de mãos dadas com o marido e os dois filhos, caminhando serenamente atrás do carro fúnebre, formando uma espécie de guarda de honra de afecto e apaziguamento. A mais bela maneira de homenagear uma vida que acaba é, certamente, alimentar a corrente de vida que continua.

OS CONTESTATÁRIOS PREFEREM AS MORENAS, AS VILAS MORENAS

Março 07, 2013

J.J. Faria Santos

                             "La liberté guidant le peuple" de Eugène Delacroix

 

A esperança não parece morar ali. Nos rostos fechados, nas expressões amargas, nos gestos bruscos, em tudo reside a angústia de um futuro adiado. Canta-se, mas não há sinais de festa; o coro desafinado celebra uma irmandade de deserdados. Há quem derrame lágrimas, de raiva ou de comoção (devem ser piegas…). Há quem reivindique o direito ao emprego (devem ser os preguiçosos, ou os acomodados da zona de conforto…). Há quem reclame a reposição integral da sua reforma decepada (devem ser os membros da conspiração grisalha, os velhos inúteis que não se importam de sabotar o sucesso das novas gerações…). Há quem grite que o povo é quem mais ordena (devem ser os saudosistas do PREC, ou os líricos…). Há quem exija a demissão do Governo (devem ser os radicais da extrema-esquerda, os que não se conformam com as regras do jogo democrático…).

O Governo aguenta? Aguenta, aguenta! Custe o que custar! E o Pedro não é insensível… O Pedro do Facebook, o que conduz um utilitário que contribui para o envelhecimento do parque automóvel, o que vive nos subúrbios e é um adorável vizinho, o que faz questão de ensinar aos descendentes o valor do esforço e do mérito, o que vai ao supermercado e confecciona suculentas farófias, esse Pedro até era capaz de cantar a Grândola…

O pior é o outro Pedro. O Peter Steps Rabbit (chamemos-lhe assim, acrescenta-lhe à tecnocracia lusa uma aura de estadista europeu e um travo de cosmopolitismo atlantista) tem uma missão e o zelo dos déspotas iluminados no seu cumprimento. Ele é o ponta de lança da nova geração, o profeta da meritocracia e da sociedade civil do futuro, liberta da canga estranguladora do Estado. Ele é o apóstolo do triunfo da selecção natural, do Estado social dos serviços mínimos, da emergência de uma nova geração lusa expurgada dos pusilânimes, dos inúteis e dos obsoletos. Peter Steps Rabbit forma, conjuntamente com Victor Casper (recordista mundial das previsões falhadas) e o notável ministro dos pastéis de nata, You Can Call Me Al, uma formidável troika, soberbamente assessorada pelo eminente Michael Grass, notabilizado pelo seu amor ao saber, consubstanciado na sua proclamação da “busca permanente do conhecimento”, um assinalável profano Graal.

Peter Steps Rabbit quer ser o oficiante das exéquias do Portugal de Abril e o paladino empenhado do Poortugal de Março, o Poortugal que saiu à rua para gritar que “o povo é quem mais ordena”. Por que razão ninguém o ouve?

 

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