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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

RÉVEILLON

Dezembro 31, 2012

J.J. Faria Santos

                                            Imagem: Freefoto.com

 

“Let’s get out of this town, / baby we’re on fire / Everyone around here seems to / be going down, down, down”, canta Lana Del Rey no início do tema “Lucky Ones”. É uma bela maneira de receber 2013, partir em busca de um novo futuro embalados por um amor ardente, demanda apenas ensombrada pela terra de devastação que se abandona.

A alternativa? O clássico da dupla Carlos Lyra – Vinicius de Moraes, “Você e Eu”: “Podem preparar / Milhões de festas ao luar / Que eu não vou ir / (…) Podem espalhar / Que eu estou cansada de viver / E que é uma pena  / Para quem me conheceu / Eu sou mais você / E…eu”. Eis outra belíssima forma de inaugurar o novo ano, certamente com menos espírito de aventura, mas reforçando o laço de união forjado na intimidade, sem que esta opção represente uma renúncia radical à celebração comunitária.

Escreveu Fernando Pessoa, na pele do seu “semiheterónimo” Bernardo Soares (in Livro do Desassossego ): “Ter o que me dê para comer e beber, e onde habite, e o pouco espaço livre no tempo para sonhar, escrever – dormir – que mais posso eu pedir aos Deuses ou esperar do Destino?”. Será muito? Será pouco? Se não for a totalidade de uma ambição, pode bem ser um começo promissor.

A LÍNGUA VIPERINA E A PLUMA CAPRICHOSA (CLARA FERREIRA ALVES POT-POURRI)

Dezembro 27, 2012

J.J. Faria Santos

“Meu caro António Guterres (…) São sempre os pequenos gestos que nos perdem e as grandes indecisões que nos matam. (…) Cavaco Silva deixou o país em bom estado, o senhor deixa o país paralisado. Não hesite, uma última vez. Vá embora.”

 

                                                                              Expresso, 22/12/2001

 

“ (Durão) Barroso, um homem inteligente, não deixou herança nem reformou a pátria. Dele, o que conhecemos é a arte da fuga. Eleito para um cargo, sai antes de provar o seu falhanço ou a sua vitória, sai antes de ter de enfrentar as consequências da sua política e das suas escolhas.”

                                                                             

                                                                              Expresso, 3/07/2004

 

“O Portas andou a fotocopiar documentos secretos do Ministério da Defesa na véspera de sair de ministro? 61.893 páginas? (…) Nos Estados Unidos, país que Paulo Portas admirava galhardamente governado pelo seu amigo Donald Rumsfeld, ele estaria a responder perante uma Comissão de Inquérito. (…) E seria indiciado pelo procurador-geral e incriminado. E, provavelmente, posto na prisão.”

                                                                             

                                                                             Expresso, 17/11/2007

 

“Desde que o Presidente Cavaco foi eleito ainda não lhe ouvi uma palavra de jeito. (…) Cavaco permaneceu igual a si mesmo, modesto e frugal, limitado e deslocado, amarrado à âncora da sua ignorância. (…) Não estava à espera que ele fosse falar sobre o mundo complexo em que vivemos e vamos viver, com a perspicácia e a inteligência de um homem de Estado. Podemos tirar o rapaz de Boliqueime mas não podemos tirar Boliqueime do rapaz, dir-se-ia com crueldade.”

                                                                             

                                                                             Expresso, 9/08/2008

 

“Se o Partido Socialista existisse este Governo em breve deixaria de existir. (…) António José Seguro, o homem que passa o tempo ‘a deixar implícito’ que vai fazer isto e aquilo, tem os seus apóstolos (estão à espera do Pentecostes).”

                                                                             

                                                                              Expresso, 15/09/2012

 

“Meu caro (António) Borges, o senhor é um pistoleiro ao serviço do dinheiro. (…) Nunca produziu um livro que se visse, um pensamento, uma teoria geral. O senhor é um alto empregado do sistema capitalista internacional e nunca teve de se esforçar muito para compreender o mundo das pessoas que não têm a sua fortuna. (…) A condescendência que usa quando fala da estupidez e ignorância dos outros, todos os outros, sentado ao lado de inteligências como o Relvas, homem de muito estudo e procura de conhecimento, leva-me a concluir que como todos os pistoleiros, o senhor nunca critica a mão que lhe dá de comer e que não tem escrúpulo académico.”

 

                                                                              Expresso, 5/10/2012

 

“ O homem que tanto abomina a máquina do Estado, nunca parece ter hesitado em encostar-se à máquina quando lhe pareceu conveniente (Programa Foral, etc.). (…) O passado político de Passos Coelho nada tem de grandioso. É expeditivo, tem amigos expeditivos. Não é um bandido, não é um traficante. É esperto. Parece saber encostar-se.”

 

                                                                              Expresso, 8/12/2012

UM CONTO DE NATAL (V)

Dezembro 23, 2012

J.J. Faria Santos

 

5. Lana, Marco, Marina, Xavier

 

 

As pessoas danificadas têm o charme da decadência? Talvez, ruminou Marco, mas, quando gostamos delas, cogitou, preferimos que elas projectem a vibração e a pujança das vidas em construção. Nada há de jubiloso nas desistências. Ele jamais trocaria a aparente monotonia da bonança pelo estilo rebelde dos perdidos. Porém, Lana não parecia perdida, mesmo com o olhar vagueando pelo horizonte e o cabelo ondulando com a brisa. Não foi ele o primeiro a descobrir a garrafa de champanhe pousada aos pés dela, nem as quatro taças dispostas em redor desta, como se fossem guardiões antes de serem receptáculos. “Parece que vamos celebrar alguma coisa”, murmurara Marina. Xavier sorrira. Estava habituado a que Marina resmungasse perante o alívio. Descomprimira ao ver a irmã a poucos metros, mas não resistira à censura.

“Vieram salvar-me? Eu não tenho salvação”, proclamou Lana, assertiva, desafiante, rindo muito, como se não temesse cortejar a loucura ou provocar a insanidade.

“Não, viemos salvarmo-nos”, ripostou visceralmente Marco, retribuindo o sorriso, ao mesmo tempo que causava o entreolhar atónito de Marina e Xavier.

Não houve tempo para silêncios constrangedores, não foram pedidas justificações nem adiantados pretextos. Marco pegou na garrafa e fez disparar a rolha num trajecto ascendente, primeiro, e depois descendente em direcção ao rio. Xavier pegou nas flûtes e distribuiu-as. Marina aceitou com fingida relutância. Na sua maioria, os carros que passavam no tabuleiro ignoravam a assembleia, mas alguns buzinavam em sinal de saudação à celebração, e outros abrandavam como se adivinhassem um acidente.

Vidro cristalino retiniu, pensamentos opacos, ocultos ou furtivos, soltaram-se nas mentes subitamente libertas como espuma ou borbulhas de humanidade. Marina imaginou a pele revestida por um invólucro de tecido encarnado a caminho de um encontro promissor; Marco antecipou o reencontro com Guida e os miúdos, efervescentes de impaciência para abrir os presentes; Xavier admitiu convidar Eva para um repasto tardio de sonhos e licor. E, no entanto, nenhum deles tinha pressa. Essa era a magia de Lana, alguém que nada parecia esperar, não ter ninguém para a receber nem para se dar, mas de quem todos só com muitas reticências escolhiam separar-se.

Esvaziados os copos e a garrafa, arremessaram-nos para o rio, eufóricos e embaraçados, entre o receio da ilegalidade e a consciência de um acto absurdamente juvenil. Afastaram-se sem inquirirem destinos nem aprazarem reencontros. A ponte é uma passagem, mas também um ponto de encontro.

No dia seguinte, manhã fria de um dia 25 sempre caloroso, Marina, Marco e Xavier receberam uma mensagem de Lana, que dizia simplesmente “L.O.L”. A escolha estava feita. Até quando? Tudo é provisório, nada é definitivo.

 

Fim

 

UM CONTO DE NATAL (IV)

Dezembro 22, 2012

J.J. Faria Santos

4. Xavier

 

 

Ainda mal pousara a mala do portátil quando o telemóvel tocou. Viu o nome dela no visor e carregou na tecla do telefone verde, ainda antes de fechar a porta à chave. Rodopiou sobre si mesmo e dirigiu-se em direcção à garrafa de JB, vertendo uma apreciável quantidade para um copo. Quando ela começava a falar não era facilmente interrompível, nem se distinguia pela capacidade de síntese ou pelas hesitações no discurso. Em suma: podia facilmente esvaziar o copo, e até mesmo pô-la em alta-voz e circular quase indefinidamente pelo apartamento, sem correr o risco de perder o fio à meada ou ser interpelado.

Já tinham passado cinco anos desde que se divorciara de Marina e ela continuava a telefonar-lhe todas as semanas. Sob qualquer pretexto. Era como se dispensasse a presença dele, mas achasse conforto no quase monólogo que, fatalmente, acabaria por protagonizar. Era como se ele fosse o seu psicoterapeuta, com o bónus de não ter de se deixar condicionar por qualquer indicação terapêutica. Ela comandava o discurso, o modo de interacção, o tempo. Ele não se importava. Sempre o distraía das peripécias laborais, que incluíam o tonto bailado de adoração da sua secretária (sim, caíra em tentação, sucumbira a um cliché que o mortificava…). Eva era uma mulher repleta de qualidades, mas terrivelmente monótona e cheia de expectativas irrealistas em relação a ele, a eles. Vivia na ilusão de que ninguém no escritório suspeitava do relacionamento, julgando ocultar a devoção da amante com a performance irrepreensível da profissional. Fora um erro e ele dissera-lhe, consciente que estava de que tudo não passaria de uma noite em que ele optara por satisfazer o corpo e aplacar o espírito. “O amor nunca é um erro”, dissera Eva, e ele experimentara uma quase náusea, um desprezo, injusto e injustificado, sabia-o, pelas patéticas convicções das mulheres que escolhem ser iludidas.

“O Marco acha que ela está na ponte. E que pode fazer algo de estúpido!”, disparou Marina, despertando nele a rememoração de um instantâneo visual que permanecera na galeria da sua memória recente.  Minutos antes, enquanto a mão tacteava a chave de casa no bolso do seu blusão de cabedal, desviara o seu olhar para a ponte e, por instantes, julgara ver algo de familiar numa silhueta debruçada sobre o rio.

 

(Continua)

UM CONTO DE NATAL (III)

Dezembro 20, 2012

J.J. Faria Santos

                                                Imagem: Freefoto.com

 

3. Marina

  

Descalçou os sapatos, que tombaram cada um para o seu lado, deixou que os dedos dos pés desbravassem caminho por entre a carpete farfalhuda e pousou os sacos no chão. Deixou-se cair de costas para o sofá, que lhe amorteceu a queda com um suplemento de conforto providenciado pelas almofadas displicentemente distribuídas. Todo o cenário gritava Natal, dos adereços mais sofisticados aos mais utilitários. Era a árvore, de um minimalismo sedutor, eram as velas aromáticas em tom carmim, o arranjo floral na mesa de café, até os sacos do supermercado. Sentia-se demasiado cansada para se erguer, para se dirigir à cozinha, para enfiar no microondas o chop suey pré-congelado. Teria forças para dai a pouco tomar um banho regenerador, enfiar o seu vestido vermelho, as suas amadas botas de pele de crocodilo, e, conduzindo o carro que deixara ousadamente mal estacionado, partir de encontro a uma celebração do Natal presente de uma relação com escasso futuro? “Ah! A angústia das mulheres divorciadas, hesitantes entre o pavor da solidão e o receio da reincidência no falhanço…”, pensou, concluindo que a fadiga não lhe ceifara a saudável tendência para a auto-paródia.

O toque soara quando as pálpebras, como uma cortina que teimosamente insistisse em sabotar o espectáculo em cena, ameaçavam cobrir os seus olhos rendidos à indolência. Ponderou mantê-los semicerrados e desligar ostensivamente o telemóvel. E se fosse ele a comunicar alguma alteração de última hora? Tinha uma tendência lamentável para atrair imprevistos e reinventar roteiros, algo que ela achava atraente num jovem macho mas sintoma de imaturidade num homem feito. Quem mais poderia ser? Lana? Pouco provável. Falara com a irmã de manhã, e ela deixara bem explícito que tinha grandes planos para a noite que dispensavam a sua cumplicidade e muito mais a sua participação.

Não reconheceu o número. A sua voz soou velada e arrastada em contraste com a agitação amordaçada do outro lado. Palavras atiradas de supetão entravam algo intrusivamente no seu pavilhão auricular, e teve que abrir bem os olhos para processar a informação numa equívoca troca de sentidos.

“O que é que queres dizer com isso de ela ir fazer alguma coisa estúpida? Eu faço imensas coisas estúpidas todos os dias…o que é que isso tem de irremediável?”. Ele não precisou de responder. Ela percebera.

(Continua)

UM CONTO DE NATAL (II)

Dezembro 18, 2012

J.J. Faria Santos

2. Marco

 

 

“S.O.S. ou L.O.L?”, escrevera ela, depois de se recusar a falar com ele. Barricado na casa de banho, encostado à parede, testemunhava no espelho à sua frente o estupor que adivinhara enquanto estivera sentado na sanita, dividido entre a indecisão e a suspeita da impotência. Conseguia ouvir a algazarra do Martim, excitado com os presentes, com os avós, com as luzes, com as guloseimas. E até mesmo a Matilde, mais nova, que sempre o emocionava com a atenção extática com que absorvia pela enésima vez a leitura teatral que ele fazia da história da Cinderela, habitualmente mais circunspecta, contribuía para o alarido. Mais cedo que tarde, a Guida perguntaria com fingido agastamento: onde está o pai?

O que fazia ele ali, clandestinamente a tentar falar com quem não o queria ouvir? E com que direito é que Lana reaparecera na vida dele, vinte anos depois, como se quisesse obliterar o tempo, como se pretendesse recuperar sensações, e cobrar dívidas sentimentais e juros de mora por alegados incumprimentos reiterados. E, pior, por que motivo se deixara ele cair na emboscada da culpa? Mas, culpa de quê? E logo ele que não tinha tendência para a introspecção, e que via todo o deliberado remexer na ferida como uma falência da vontade e uma cedência ao adocicado remanso da vitimização.

Abriu a torneira e o jacto de líquido incolor ao chocar com as suas mãos produziu um borbulhar como numa fria ebulição. Ergueu-as até ao rosto e aspergiu-o com a água que não se escapara por entre os dedos numa espécie de baptismo profano. Enxugou o rosto e, ao afastar a toalha, observou-a por instantes, quase como se temesse que nela ficasse impressa a marca do seu desassossego. Talvez fosse melhor que tivesse ficado, se isso fosse garantia de que, ao reunir-se à restante família, ninguém notaria qualquer resquício de preocupação.

Ninguém notou. Entrou sorridente na sala, envolveu Guida com o braço direito, sinalizando mais amparo que posse, e preparou-se para o embate do afecto furioso de Martim e Matilde, num abraço de grupo que deixava sempre os seus sogros à beira de um ataque de comoção ternurenta. Foi, todavia, no meio desta celebração que ele percebeu que não se iria conseguir abstrair do que o incomodava. Arranjou um pretexto para se isolar e procurou no telemóvel o número de Marina.

 

(Continua)

A PONTE - UM CONTO DE NATAL (I)

Dezembro 16, 2012

J.J. Faria Santos

1. Lana

 

 

Olhando as luzes da cidade reflectidas no leito negro e pastoso, sobrava-lhe ainda presença de espírito para meditar numa evidência irónica: enquanto as ondas revoltas no mar lhe devolviam a tranquilidade, as águas paradas do rio incitavam-na à mais irremediável das rebeliões. Estática, encostada ao gradeamento, iluminada pelo luar e fustigada pela brisa cruel de Dezembro, esperava, não sabia bem o quê ou porquê. Esperava, simplesmente, com o desprendimento assustador dos desapossados.

A sul da ponte, uma mulher saiu energicamente do carro e, acedendo ao banco traseiro, recolheu três ou quatro sacos, que transportou na direcção de um prédio de apartamentos. Do lado oposto, no ponto cardeal que as bússolas indicam, um homem de blusão de couro e pasta na mão caminhava resoluto mas cansado, como se todo o peso de um dia, a carga do viver quotidiano, invadisse a noite sem remorso de lhe toldar a mente ou sabotar o repouso.

Sentiu o telemóvel vibrar no bolso. Era a única coisa que vibrava, junto ou no interior do seu corpo. Tudo o resto era uma paisagem de devastação, uma espécie de coma induzido pelos golpes do destino, ou pela sua fraqueza intrínseca, ou pela sua predisposição para a passividade, ou pela sua inadequação para o exercício de viver. Houvera um tempo em que fora capaz, em que ousara disputar o jogo, em que se entregara com galhardia ao usufruto da sua condição de membro da tribo.

Recusou a chamada e pôs o polegar oponível a compor uma mensagem. Curta e incisiva. Seleccionou um nome e carregou no enviar. Olhou para um lado e para o outro. Tenteou a melhor forma de se empoleirar no gradeamento. Lá no fundo, as águas quase paradas, mansas e baloiçantes, aguardavam a sua decisão. Hesitou. Um carro passou, cheio de vozes em alvoroço, polvilhando o ar com as ondas sonoras do “Driving Home for Christmas”, do Chris Rea. “Driving”? Porque não “Diving”, pensou obscenamente divertida. Mergulhar num Natal molhado de espessa escuridão. 

(Continua)

 

MOURA ENCANTADA

Dezembro 12, 2012

J.J. Faria Santos

Já sabíamos que Ana Moura existia para além do fado. Poderíamos, contudo, recear que a sua veia experimentalista a fizesse correr o risco da descaracterização, ou que a leveza das novas rotas desvirtuasse a gravidade do rito fadista, retirando-lhe profundidade. Só que, porventura inspirada pela letra que Paulo Abreu de Lima escreveu para o tema Despiu a Saudade (“Vai p’ró espelho, faz-se bonita / Lábios vermelhos, corpo de chita”), ela foi buscar ao felino a astúcia e a velocidade, o engenho e o risco, para um trabalho que esbate fronteiras, em mais que um sentido. Que a harmonia e a coerência de Desfado não se ressinta da diversidade é um triunfo adicional. Porque afinal não é assim tão grande a distância que vai de A Case of You  (Joni Mitchell - “Go to him , stay with him if you can / But be prepared to bleed”) até O Espelho de Alice (Nuno Miguel Guedes - “Todas as coisas são estranhas / Todas as dores são tamanhas / E eu o seu inventário…Mas na louca lucidez / eu sei que esta é a vez / em que o fim é recomeço”).

Talvez nunca antes o espírito do fado tenha estado tão virado para o futuro. Em Como Nunca Mais  (Tozé Brito), Ana Moura começa por convidar a saudade a entrar (“Saudade, vá, entra à vontade / Porque eu já esperava que fosses voltar”) para terminar numa declaração de fúria de viver (“Não há dois dias / Nunca iguais / E eu quero viver cada dia / Como nunca mais”.

QUEM MATOU ROSIE LARSEN?

Dezembro 06, 2012

J.J. Faria Santos

 "La mort" de Jean Delville

                                            (Courtesy of www.bertc.com)

 

O que tornará The Killing  uma série tão viciante? Será a música, melancólica e inquietante? Será a omnipresente chuva de Seattle, que ao invés de providenciar uma purificação do corpo e da alma ameaça encharcar de dúvidas e angústias aqueles que enfrentam uma forma indefinível do mal? Será a invocação, deliberada ou fortuita, de Twin Peaks, com a sua rede de relações interpessoais em que a familiaridade não exclui o perigo, embora sem o bizarro universo lynchiano?

Rosie Larsen habitava nesse autêntico território de mutantes que é a adolescência, onde a perda da inocência e o impulso exploratório se conjugam para edificar uma muralha de autonomia que não tolera o escrutínio. E isso torna o luto dos pais mais difícil, imersos em recriminações, tentando identificar falhas, catalogar insuficiências. O apaziguamento só poderá advir de uma investigação policial bem sucedida que identifique o assassino. Por isso, também, cada pista falsa ou qualquer perceptível hesitação na acção punitiva é um remexer na ferida de consequências imprevisíveis. Quando a investigação policial sobre o homicídio se entrelaça com uma campanha eleitoral, em que os spin doctors manuseiam material produto de uma pesquisa aturada quase mimética de um inquérito criminal, a suspeita alastra para domínios impensáveis. Quando um político se liberta dos seus escrúpulos, prescinde de uma espécie de imunidade moral.

Sarah Linden, a detective que lidera a investigação, a braços com um filho adolescente em deriva de rebeldia e com um noivo em modo de espera, persiste na vontade de deslindar este último caso antes de abandonar a cidade da chuva inclemente. A actriz Mireille Enos interpreta-a com a dose exacta de determinação, exasperação, frustração e persistência. Como se um inadiável imperativo ético a comandasse. A vida pode esperar; a morte reclama urgência na explicitação dos seus motivos.

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