PONTO DE ENCONTRO: UM FADO-SAMBA
Setembro 30, 2012
J.J. Faria Santos
Imagem: Freefoto.com
Enquanto subo as escadas do restaurante, o fluxo do pensamento é imparável e ocorrem-me as imorredoiras e provocatórias palavras de Oscar Wilde:"A família não passa de uma horda de parentes incómodos que desconhecem em absoluto como viver e são incapazes de prever o momento ideal para morrerem". Não devemos ser demasiado duros com um homem que, apesar de tudo, também escreveu que "depois de um bom jantar, podemos perdoar a toda a gente, até à própria família". Suponho que, para o caso, um almoço produza o mesmo efeito.
Não partilhando da letra da afirmação, acredito que ela é de alguma maneira fiel ao espírito que envolve o conceito de família: um lugar de ligações fortes, sentimentos exacerbados e sentido de pertença apurado, onde, por vezes, qualquer contrariedade ou discórdia atinge proporções bíblicas. Perdoamos a estranhos enormes agravos e entrincheiramo-nos no ressentimento quando alguém próximo nos desaponta.
Há quem filme e quem fotografe. Já ninguém se contenta com a memória e, na era das redes sociais, a posteridade vem a galope e o presente é atropelado pelo passado. Noto que os convidados especiais, descontraídos e sorridentes, correspondem ao meu cumprimento com afabilidade e simpatia. Junto deles, com um ar vagamente nauseado (pelo desconforto físico ou emocional), D. concedia, uma vez por outra, em desanuviar o rosto. A súbita aparição de uma figura de pele clara e cabelo loiro faz-me antever a perspectiva de se tratar de uma representante de um hipotético ramo nórdico ou anglo-saxónico da família… Uma ilusão em breve desfeita.
Precedendo o repasto toda a gente se entrega à distribuição de cumprimentos e a um breve self-service de conversa: uma frase atirada aqui, uma observação acolá. Há quem se movimente quase freneticamente e quem se encoste à parede, numa divisão nem sempre estática entre actor e espectador. F. explica-me que ainda não se adaptou aos seus novos dentes. Pode parecer um assunto esotérico, tendo em conta que o fulcro da reunião familiar era celebrar a visita dos familiares do Brasil, mas, vendo bem a coisa, antes de executar uma tarefa preocupamo-nos com as condições de trabalho a as ferramentas disponíveis, logo, antes de um lauto repasto queremos assegurar-nos do estado ideal dos nossos molares, caninos e incisivos.
Entre uma garfada de bacalhau e um gole de vinho tinto, reparo nas novas gerações da família e naquilo que eu poderia chamar o efeito espelho: a forma como os traços físicos ou de carácter dos pais se projectam nos filhos. D. e P. têm, por vezes, uma pose contemplativa que faz lembrar a mãe; R.F. e F.F. projectam uma espécie de força tranquila, um dinamismo que traduz segurança e conforto com a própria pele, absolutamente invulgar na idade deles; e G. é quase comovente na forma como combina uma aparente fragilidade com um voluntarismo e uma vontade de experimentação inesgotáveis. E tem o riso da inocência absoluta, uma espécie de estado beatífico que nos faz acreditar no futuro. Já R., o comparsa de brincadeiras de G., mantém o rosto sério, como se o adulto que será já estivesse a marcar presença na criança que é.
No auge da celebração, M. levanta-se e propõe um brinde à família. Forma-se uma corrente de emoção, um certo fervor de clã, enquanto se erguem as taças e os copos. Levado pelo clima quase esfusiante, lembro-me de ter pensado: “temos de arranjar um pretexto para tornar esta reunião familiar num ritual anual”.
Capricho dos deuses ou persistência dos humanos, algum simbolismo existirá no facto de no Ano do Brasil em Portugal ter sido possível concretizar, postumamente e por interpostas pessoas, o sonho do patriarca. Acolhendo condignamente e calorosamente os parentes do Brasil, celebra-se aquilo que é essencial: o que é a família senão o lugar onde somos sempre bem-vindos?
Advertência: Este é um exercício de ficção. Qualquer semelhança com factos, pessoas ou acontecimentos é (im)pura coincidência.