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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

PACTO DE SANGUE

Fevereiro 27, 2012

J.J. Faria Santos

Estamos longe, muito longe do naturalismo da ficção televisiva, das suas convenções estereotipadas. Não há famílias de classe média com empregadas fardadas e fruta tropical ao pequeno-almoço, nem esforçados agregados da classe D, pobrezinhos e respeitadores, enfrentando a injustiça e a maldade com uma máscara de sofrimento e a revolta açaimada.

Não há em Márcia sombra de pieguice ou qualquer forma de paralisia face à desgraça. Toda a sua força é investida na reacção. Um problema nunca instala a desordem no seio familiar, pura e simplesmente porque a disfuncionalidade já lá está. Gerir o caos está no ADN desta matriarca, subitamente confrontada com um fantasma do passado, reencarnado noutro papel. Rita Blanco é superlativa num desempenho subtil em registo underacting, quando seria tão fácil adicionar excesso ao conflito emocional.

Mas a acção, por mais impactante que seja, não livra ninguém de renúncia. Por isso, Ivete  (Anabela Moreira, na plena posse dos seus enormes recursos dramáticos)  acaba por trocar o seu sonho de upgrade estético pela necessidade de ajudar o sobrinho, numa jogada de alto risco que implica a disponibilização do seu corpo, num sacrifício violento que só uma outra forma de violência pode redimir.

Sangue do Meu Sangue, de João Canijo, é uma espécie de reality show desprovido de artificialismo, uma espécie de “vida tal qual ela é” em que toda a gente preferia que “ela não fosse assim”. Só que em vez da lamúria, temos a afronta; em vez do induzido exibicionismo gratuito temos brutais respostas de vidas em perda. Sem regras e sem lei, excepto a da preservação do amor incondicional.

VAIA CON DIOS OU WHAT HAPPENED TO PAULO PORTAS?

Fevereiro 21, 2012

J.J. Faria Santos

Há um simbolismo devastador na visão da comitiva do chefe supremo das Forças Armadas a bater em retirada em plena Avenida João XXI, providencialmente assoberbada com um “impedimento relacionado com a função presidencial”, o qual lhe permitiu evitar uma manifestação escolar. É impossível, também, não notar a desproporção entre o potencial da “ameaça” e a medida de contingência deliberada.

Alguns dias depois, o primeiro-ministro avançou, resoluta e pedagogicamente, em plena Feira do Queijo da Serra, em Gouveia, por entre a turba exaltada que o vaiava. Exibia a sua habitual máscara de força tranquila, onde se misturam, em doses variáveis, frieza, determinação e afabilidade. Assumiu uma postura dialogante e de “ouvidor”, tarefa que fora (será ainda?) reivindicada pelo Presidente da República. Sibilinamente, “fonte oficial” do Governo fizera constar ao Expresso que “não fugir da rua é vital”. Uma estocada certeira e com perfume de retaliação.

Não surpreende, verdadeiramente, esta atitude de Cavaco Silva. Em toda a sua carreira política sempre deu sinais de encarar qualquer discordância ou crítica como uma afronta pessoal. Quanto a Passos Coelho, agiu como os representantes eleitos dos cidadãos devem agir: dispondo-se a ouvi-los. Mas porque o cenário era uma feira (e o primeiro-ministro até já fez um casting para La Féria), ocorreu-me uma variação de um célebre título de uma peça do encenador: What happened to Paulo Portas?

MONA LISA: UMA DONA DE CASA DESESPERADA?

Fevereiro 18, 2012

J.J. Faria Santos

 

O quadro terá sido  encomendado em 1503, numa  fase da vida de Da Vinci em que  ele deixara  de estar ao serviço de César Bórgia. O retrato de Lisa di Noldo Gherardini teria o intuito, segundo Guillaume Cassegrin, de “ celebrar, de maneira tradicional, no interior da mansão familiar , as virtudes da esposa e da mãe”. Uma das originalidades do quadro é que, pela primeira vez , o pintor enquadrou a figura numa paisagem; outra é o facto de Lisa olhar directamente para o observador, criando uma ilusão de movimento. Claro que a mais célebre das inovações é a utilização da técnica que os italianos designam por sfumato, e que Ernst Gombrich, em “A História da Arte”, descreveu como sendo “um traçado esbatido e cores suaves que permitem a uma forma fundir-se com outras e deixar sempre algo para alimentar a nossa imaginação”.

O impacto do quadro foi tal na cultura popular que as especulações e as apropriações se sucederam, colocando em causa a identidade da retratada, e multiplicando as opiniões contrastantes em relação à natureza do seu sorriso. “Do you smile to tempt a lover, Mona Lisa / Or is this your way to hide a broken heart?”, entoou Nat King Cole numa composição da dupla Livingston/Evans, justamente chamada “Mona Lisa”. De repente, uma pintura alegadamente executada para celebrar os valores familiares adquiria um travo de transgressão ou melancolia. Podemos, claro, sempre imaginá-la como uma uma dona de casa desesperada em pleno Renascimento, dividida entre a tranquilidade bonançosa da vida familiar e o tédio da rotina que por vezes perturba as almas inquietas. O enigma, porém, permanece. Como também cantava Cole, “Are you warm, are you real, Mona Lisa / Or just a cold and lonely lovely work of art?”

DO AMOR: SUAS POSSIBILIDADES E INSUFICIÊNCIAS

Fevereiro 13, 2012

J.J. Faria Santos

                                    "OLHARES" DE MARTA CORDEIRO

 

Cai chuva dos teus olhos ao entardecer, amor,

Lágrimas de arame farpado

Deslizando na seda do teu rosto em pousio.

Nada a colher dos teus lábios ressequidos,

Exangues pela cultura intensiva

De sentimentos ingratos e improdutivos.

 

Dos teus olhos ao anoitecer, amor, só aguaceiros,

Esparsos e furtivos,

Na geometria do teu rosto indescritível.

Dos teus lábios nasce o sorriso de bissectriz,

De um cansaço ameno e rendido

À voragem de uma derrota iniludível.

 

De madrugada, amor, olhos secos,

Inóspitos e rapaces,

Como os de um falcão no cipreste.

Dos teus lábios verbo mudo

Na emboscada dos meus lábios.

Arco-íris nos céus das nossas bocas.

 

                                              1994.09.19

 

                                                                                                                                   

O PASSADO DE(S)COMPOSTO

Fevereiro 09, 2012

J.J. Faria Santos

A nossa percepção da realidade é sempre subjectiva e transitória. No entanto, quando essa percepção se centra no passado há sempre uma ilusória noção de imutabilidade, como se a narração da nossa vida pretérita estivesse escrita na pedra. Atribuímo-nos, sem grande espírito crítico, o distanciamento suficiente para uma análise clínica de factos e pessoas. Privilegiamos o apaziguamento, até porque o ressentimento ou a frustração perturbariam demasiado os nossos dias. A nostalgia vive dessa cristalização da realidade passada, como uma fotografia a preto-e-branco.

Mas o que acontece quando um passado arrumado irrompe no presente e cedemos à tentação de o revisitar? E se nesse processo algo lunático nos apercebemos de quão erradas estavam as nossas ideias preconcebidas?

Tony Webster, ao confrontar-se com o seu passado, percebe que certos gestos de grandeza não passam de uma estratégia de fuga, que o julgamento superficial que por vezes fazemos das pessoas mais que idealizado ou injusto pode ser cruel, e que é sempre fútil e infrutífera a tentação de reescrever o passado.

 “O Sentido do Fim”, de Julian Barnes, é uma meditação sobre o tempo e a memória. Interroga-se Tony Webster: “Vivemos com suposições tão fáceis, não vivemos? Por exemplo, de que a memória é igual aos acontecimentos mais o tempo (…) Quem foi que disse que a memória é aquilo que pensávamos ter esquecido? Para nós devia ser óbvio que o tempo não actua como fixador, e sim como dissolvente”.

Por entre a bruma do tempo, os acontecimentos gravados na película da nossa memória não asseguram a autenticidade ou a fiabilidade. E imaginar que podemos sempre rectificar ou inverter actos ou omissões que fazem parte do nosso passado é um exercício condenado ao fracasso. Que a consciência desta impossibilidade não nos angustie será sempre a medida de uma certa sabedoria. 

O PACIENTE PORTUGUÊS

Fevereiro 02, 2012

J.J. Faria Santos

Um funcionário superior do FMI descreveu a instituição como uma cooperativa de saúde cujos membros efectuam checkups regulares. Aos que estejam enfermos, os países membros saudáveis ajudam a pagar as contas. O jornalista da Newsweek que o escutou frisa no artigo que o problema é que os governos desses países “tendem a resistir ao diagnóstico e os cidadãos odeiam o tratamento, o qual com frequência envolve uma dolorosa austeridade”. Uma funcionária que trabalha com Christine Lagarde ofereceu outra perspectiva, mais brutal: “as pessoas viam-nos como homens de fato escuro e pastas pesadas semelhantes a cangalheiros”. Por fim, alguém recordou que o FMI também já fora conhecido como “a instituição que comia bebés ao pequeno-almoço”. A suprema ironia é, evidentemente, serem hoje os anteriormente prósperos países ocidentais a terem de suportar as receitas amargas da instituição. Mesmo assim, a Sra.Lagarde, com a sua postura menos dogmática e a ideia de criar uma espécie de “firewall global” que triplique o volume de capital que o fundo tem para socorrer os países em dificuldades, surge como um referencial de sensatez face ao fundamentalismo austeritário e ao perfil castigador da Sra. Merkel. Multiplicam-se as declarações de reputados economistas e responsáveis políticos no sentido de alertarem para a necessidade de promover o crescimento económico, e até mesmo tecnocratas nomeados para substituírem políticos eleitos e imporem medidas ainda mais restritivas (por exemplo Mario Monti), divergem do diktat germânico.

Mas, em Portugal, a ortodoxia prevalece. Os “herdeiros” do pensamento de Milton Friedman parecem ver na necessidade de racionalização da despesa uma oportunidade para debilitar o Estado. Chamam a este expediente “democratizar a economia”. Num artigo reproduzido em Outubro passado no Público, Dani Rodrik, professor de Economia Política em Harvard, discorreu sobre o pensamento de Friedman, atribuindo-lhe a capacidade de explicar de uma forma “clara e acessível que o sector privado é a base da prosperidade económica”. Mas não se coibiu de apontar que Friedman “no seu zelo em promover o poder dos mercados (…) apresentou o governo como o inimigo do mercado. Assim sendo, impediu-nos de ver a evidente realidade de que todas as economias prósperas são, de facto, mistas. Infelizmente, a economia mundial continua a ter de lidar com essa cegueira no rescaldo da crise financeira que resultou, em boa medida, de deixar os mercados financeiros demasiado à solta”.

Acossado pela quebra das receitas resultantes da contracção económica, pelos recordes sucessivos das yields da dívida soberana e pela ameaça de ser o próximo elo mais fraco da zona euro, o Governo de Portugal já acusa as outrora competentes agências de notação financeira de “decisões infundadas”, argumentação “inconsistente” e de usar a sua actividade para “fazer política”. Os mesmos que, no Portugal A.P. (Antes de Passos), diziam que  a desconfiança dos investidores se devia a um executivo desacreditado, falam agora de uma crise sistémica e que mesmo que o país cumpra as suas metas só uma solução global para a zona euro nos livrará de terríveis apuros.

Debruçado sobre o paciente português, a equipa formada pelos “herdeiros” de Friedman desenvolve o seu ensaio clínico, procurando introduzir no organismo as substâncias de que a desregulação é feita. Este é, na verdade, um ensaio sobre a cegueira.

 

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