Um funcionário superior do FMI descreveu a instituição como uma cooperativa de saúde cujos membros efectuam checkups regulares. Aos que estejam enfermos, os países membros saudáveis ajudam a pagar as contas. O jornalista da Newsweek que o escutou frisa no artigo que o problema é que os governos desses países “tendem a resistir ao diagnóstico e os cidadãos odeiam o tratamento, o qual com frequência envolve uma dolorosa austeridade”. Uma funcionária que trabalha com Christine Lagarde ofereceu outra perspectiva, mais brutal: “as pessoas viam-nos como homens de fato escuro e pastas pesadas semelhantes a cangalheiros”. Por fim, alguém recordou que o FMI também já fora conhecido como “a instituição que comia bebés ao pequeno-almoço”. A suprema ironia é, evidentemente, serem hoje os anteriormente prósperos países ocidentais a terem de suportar as receitas amargas da instituição. Mesmo assim, a Sra.Lagarde, com a sua postura menos dogmática e a ideia de criar uma espécie de “firewall global” que triplique o volume de capital que o fundo tem para socorrer os países em dificuldades, surge como um referencial de sensatez face ao fundamentalismo austeritário e ao perfil castigador da Sra. Merkel. Multiplicam-se as declarações de reputados economistas e responsáveis políticos no sentido de alertarem para a necessidade de promover o crescimento económico, e até mesmo tecnocratas nomeados para substituírem políticos eleitos e imporem medidas ainda mais restritivas (por exemplo Mario Monti), divergem do diktat germânico.
Mas, em Portugal, a ortodoxia prevalece. Os “herdeiros” do pensamento de Milton Friedman parecem ver na necessidade de racionalização da despesa uma oportunidade para debilitar o Estado. Chamam a este expediente “democratizar a economia”. Num artigo reproduzido em Outubro passado no Público, Dani Rodrik, professor de Economia Política em Harvard, discorreu sobre o pensamento de Friedman, atribuindo-lhe a capacidade de explicar de uma forma “clara e acessível que o sector privado é a base da prosperidade económica”. Mas não se coibiu de apontar que Friedman “no seu zelo em promover o poder dos mercados (…) apresentou o governo como o inimigo do mercado. Assim sendo, impediu-nos de ver a evidente realidade de que todas as economias prósperas são, de facto, mistas. Infelizmente, a economia mundial continua a ter de lidar com essa cegueira no rescaldo da crise financeira que resultou, em boa medida, de deixar os mercados financeiros demasiado à solta”.
Acossado pela quebra das receitas resultantes da contracção económica, pelos recordes sucessivos das yields da dívida soberana e pela ameaça de ser o próximo elo mais fraco da zona euro, o Governo de Portugal já acusa as outrora competentes agências de notação financeira de “decisões infundadas”, argumentação “inconsistente” e de usar a sua actividade para “fazer política”. Os mesmos que, no Portugal A.P. (Antes de Passos), diziam que a desconfiança dos investidores se devia a um executivo desacreditado, falam agora de uma crise sistémica e que mesmo que o país cumpra as suas metas só uma solução global para a zona euro nos livrará de terríveis apuros.
Debruçado sobre o paciente português, a equipa formada pelos “herdeiros” de Friedman desenvolve o seu ensaio clínico, procurando introduzir no organismo as substâncias de que a desregulação é feita. Este é, na verdade, um ensaio sobre a cegueira.