Se a palavra “buraco” é associada à linguagem de “mineiros a cavadores”, supõe-se que “derrapagem” seja património de motoristas, pelo que “desvio”será a palavra plebeia legitimada por Vítor Gaspar para demonstrar à populaça a inevitabilidade dos seus remédios. Despindo a sua pele de técnico, assumiu a sua condição de político, no conselho de ministros extraordinário de 18 de Dezembro, apresentando um novo valor do défice para 2012, 5,4%, o qual “coloca desafios de comunicação” ao Governo. Recomendou que se destacasse a evolução do défice estrutural, que seria mais favorável, em detrimento do défice nominal. Se ele fosse um austero e dedicado tecnocrata, preferiria detalhar, sem outros considerandos, as medidas necessárias para corrigir o desvio, em vez de se embrenhar nos “desafios de comunicação”. Talvez fosse mais premente explicar como é que foi tão imprevidente ao ponto de não contemplar o impacto (€478 milhões), em 2012, da transferência de fundos de pensões para o Estado em 2011. O brilharete para o ano transacto foi uma jogada de último recurso que inviabilizou o registo, atempado, das suas repercussões no OE deste ano? Em vez de proclamar a proximidade de um “ponto de viragem”, faria melhor em afinar as suas previsões (no Documento de Estratégia Orçamental 2011-2012 constava que o PIB decairia 1,8%; passados dois meses, no Relatório do Orçamento de Estado, a quebra anunciada era já de 2,8% - um “desvio” assaz significativo que, com o impacto das medidas de austeridade, provavelmente, ainda será maior). Não deixa de ser irónico ver a Standard & Poor’s frisar que “um processo de reforma baseado apenas no pilar da austeridade orçamental arrisca derrotar-se a si próprio”. E enquanto Portugal vai cortejando os mercados, estes, insensíveis aos nossos esforços, colocam as taxas de juro a dez anos no máximo (histórico, como diria o senhor primeiro-ministro…) de 14,6%, enquanto nos empurram para a vice-liderança da possibilidade de default.
Eleito com o compromisso da verdade, torna-se caricato confrontar as promessas eleitorais de Pedro Passos Coelho com a sua prática governativa. Da subida dos impostos aos cortes nos salários e nas pensões, passando pela falha no refrear do clientelismo, a dissonância propaga-se, cruel e implacável. Mas num aspecto Passos Coelho permanece fiel ao prometido: a sua agenda ideológica, desreguladora e que alia a desconfiança no Estado à crença inabalável na “mão invisível” do mercado, avança impulsionada por um discurso da inevitabilidade e da ausência de alternativas. Mas pode o medo congregar uma nação na construção de um futuro sustentável? Pode a desigual e brutal devastação dos rendimentos, dos direitos e das expectativas das pessoas criar esse Portugal novo que a propaganda liberal antevê? E faz sentido promover uma “reforma” laboral que desequilibra a relação de trabalho em desfavor da parte mais fraca, e que assenta na redução dos custos do trabalho depois de terem andado anos a proclamar que não podemos assentar a nossa competitividade numa política de baixos salários?
Mas se o primeiro-ministro se defronta com problemas de coerência entre o discurso e a prática, o Louçã do ministério das Finanças tem em Maria João Avillez uma empenhada cheerleader. Escreveu ela, cândida e arrebatadamente, no Público, a 17 do corrente mês: “Descobri que não me dava jeito duvidar de Vítor Gaspar, acredito nele como quem respira: automaticamente”. É um bom princípio acreditar nos detentores dos cargos públicos, desde que isso não amoleça o nosso espírito crítico, nem nos faça esquecer que a verdade de uma palavra, de uma acção ou de uma lei não garante a sua bondade ou a sua justeza.