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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

O CORAÇÃO DO FADO

Novembro 26, 2011

J.J. Faria Santos

Um coração independente, persistente e indomável, levava Amália, entre a perplexidade e a impotência, a proclamar: “Se não sabes onde vais / Porque teimas em correr / Eu não te acompanho mais”. Décadas mais tarde, a partir do mesmo Fado Bailado, Fernando Pinto do Amaral escreveu, para a voz de Carlos do Carmo, uma variação de sentido contrário: “Se ainda bates coração / Sem razão / Não te sei dizer que não / Vou contigo até ao fim”. Quer um quer outro iluminam a essência do fado: uma aguda percepção, muito para além da vulgata do miserabilismo e do fatalismo, de que, independentemente do livre arbítrio e do exercício da vontade, uma vida é um constante desafio ao aleatório e ao contingente, onde, num minuto, um aventura de sonho se pode transformar num descalabro colossal. E um dia, como enunciava o título de um celebrado filme francês, de tanto bater o coração pára.

UM MOTE PARA TEMPOS DIFÍCEIS

Novembro 20, 2011

J.J. Faria Santos

 

             Credit: Free photos from acobox.com

 

 

 

“WE ARE ALL IN THE GUTTER, BUT SOME OF US ARE LOOKING AT THE STARS”

 

                                                                  OSCAR WILDE

 

 

“Todos nós estamos na valeta, mas alguns de nós olham para as estrelas”

 

            (na tradução de Levi Condinho in “Aforismos” – Contexto Editora)

 

 

CONTÁGIO

Novembro 18, 2011

J.J. Faria Santos

 

 

Credit: Free images from acobox.com - "LE RAPT D'EUROPE" DE JEAN-BAPTISTE MARIE PIERRE

 

 

Angela Merkel sentiu-se na obrigação de, no congresso do seu partido, alertar os seus correligionários para o facto de  “se a Europa sofrer, a Alemanha também sofrerá”. Lembrou que a UE é o destino de mais de 60% das exportações alemãs, e que poderiam ficar em risco cerca de nove milhões de postos de trabalho alemães. No entretanto, persistem as divergências sobre o papel do BCE na gestão da crise e as taxas de juro das dívidas da Espanha, Itália, França, Bélgica e Áustria atingem valores recorde. Jean-Claude Juncker, visceral adversário de qualquer apartheid na zona euro, considerou mais preocupante a dívida alemã do que a espanhola (a dívida pública da Alemanha representa cerca de 26% da dívida pública total da zona euro). Niall Ferguson, desvalorizando a capacidade dos Estados Unidos imprimirem moeda à medida dos seus desejos, alerta na Newsweek para a possibilidade da crise europeia deflagrar também na terra do Tio Sam. “Actualmente a dívida federal bruta situa-se nos cerca de 100% do PIB. Há quatro anos estava nos 62%. Em 2016 o Fundo Monetário Internacional prevê que será de 115%”, enumera ele. E não deixa de relembrar que as exportações americanas para a UE são três vezes superiores às que se destinam à China. É arriscado confiar na estrela do Oriente para compensar o refluxo das estrelas do Ocidente. Na mesma edição da revista, Gordon Brown recorda onze países que mudaram de governo desde que a crise começou, e contabiliza em 23 (de um total de 27) os ministros das finanças que foram desalojados dos seus postos. O pior é que este movimento em dominó não constituiu um rejuvenescimento da legitimidade democrática dos governos, nem a expressão de uma alternância de ideias ou de projectos. Numa altura em que, mais do que nunca, se deveria impor o primado da política, prevalece o mito da tecnocracia como fonte de governança equilibrada. O antídoto para o contágio que alastra radicará, necessariamente, no respeito pelo sentido etimológico das palavras: a organização da cidade (polis) terá de se libertar do espartilho limitado das regras que gerem a casa (oikos).

OTELARIA ( OTELO + TONTARIA)

Novembro 10, 2011

J.J. Faria Santos

“Para mim, a manifestação dos militares deve ser, ultrapassados os limites, fazer uma operação militar e derrubar o Governo”, disse Otelo Saraiva de Carvalho, em entrevista à agência Lusa. Esta declaração, e outras de idêntico teor, demonstram à saciedade a distância que vai do revolucionário ao democrata. Que as debilidades da democracia representativa não fossem pretexto para torpedear os seus fundamentos, era o mínimo que se poderia esperar do estratega do golpe que liquidou a ditadura. Infelizmente, Otelo parece advogar um regime político condicionado pelos pronunciamentos de uma vanguarda militar. Que isto se defenda em pelo século XXI, numa democracia ocidental consolidada, como contestação às decisões de um poder eleito e legitimado pelo voto livre de um povo, raia o delírio. Mas, bem vistas as coisas, o homem nunca foi um modelo de sensatez, e trilhou caminhos perigosos e altamente questionáveis. “Bastam 800 homens”, diz ele. 800 lunáticos para, sob a inspiração dele, conduzirem uma acção que, ironicamente, resultaria na liquidação do regime que ele se orgulhava, pelo menos até há seis meses, de ter ajudado a implantar. Entre o populismo e a irrelevância, o herói arrisca, aparentemente sem hesitar, desbaratar o seu precioso capital simbólico: o arrependimento não apaga o acto, mas deslustra a rectidão da intenção.

A AMEAÇA DA MEMÓRIA

Novembro 04, 2011

J.J. Faria Santos

Um velho internado numa instituição para indivíduos com problemas cognitivos. Um jovem cuja única recordação da mãe, supostamente falecida poucos meses após o seu nascimento, consiste numa visão dela nos braços de outro homem que não o pai. Entre os dois existiu sempre uma avareza de afecto, encerrados que estão, ambos, nas suas dúvidas e nos seus segredos. O filho negociara, bravamente, a sua liberdade e a sua independência. Ao revê-lo, debilitado, Tengo, o filho, percebe que o dissipar da memória ameaça a descoberta da verdade, impossibilitando a confirmação da sua suspeita de que aquele não é o seu pai biológico. Em Town of Cats , um excerto, disponível no site da New Yorker desde o início de Setembro, do seu novo livro, 1Q84, Haruki Murakami traça o perfil de uma relação paternal, onde ocultação e descoberta, memória e esquecimento, vácuo e preenchimento, pontuam o desenrolar de uma reconciliação.

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